Jalia

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No auge dos meus 28 anos, eu fiz uma decisão até então tida como radical para mim. A de largar tudo e viver na simplicidade. Um ano havia se passado desde quando perdi Jalia. E perder Jalia, pra mim, era perder o meu passado, pois toda minha história nesses últimos 9 anos havia sido construído com ela. Não era mais eu, e a partir de agora, sem ela, era tudo algo novo para mim. Os dias eram diferentes como não sei explicar, mas que todos que passam por um término sabem do que se trata. Após ter se passado a vontade de morrer, uma luta na qual eu quase perdi, decidi abraçar a simplicidade para tentar encontrar algo que eu chamo de vida serena. Com ela tínhamos conquistado casa, carro, emprego e uma vida boa. Foi realmente o período de ouro ter vivido com ela, tão marcante que ainda sinto momentos em sua presença, me voltam palavras ditas, manias e costumes, tudo repleto daquela sua delicadeza. O que nos consumiu foi as nossas desavenças e a minha personalidade que foi ficando cada vez pior. Nos últimos anos eu fiquei mal e revoltado, e isso foi deteriorando meu relacionamento. Ah mas como eu trocaria cada discussão por um simples abraço! Não ligaria em não ter razão se isso mantivesse Jalia ao meu lado. Sua mãe me disse uma vez que esse nome foi sonhado por seu pai, que viu seu nome ser escrito pelas estrelas! Eu estava com uma mulher iluminada, ela realmente brilhava e trazia parte desse brilho para meus dias. Seu brilho era intenso, e se Jalia fosse uma cor, ela seria o branco.
Eu já me sentia tão cansado de tudo que não tinha energia para começar algo novo. Parecia que nenhum empreendimento valia o esforço. Parecia que o mundo nunca conseguiria pagar pelas minhas noites abandonado. Nada valia a pena. Tudo o que eu tinha era a falta, e essa falta ao longo de um ano passou a ser esperança. Esperança essa que guiava meus dias me rodeando da possibilidade de poder encontrá-la novamente algum dia, em algum momento. Eu acreditava que a vida ainda poderia me surpreender, que algo estava para acontecer. Eu acreditava em um mundo espiritual onde viver é algo mágico, sendo uma realização no universo, e que não seria em vão, que existia um propósito e uma razão de ser. Os meus dias desolados ainda haviam de encontrar um conforto em um mundo onde nossos laços ainda era construído com o amor mais puro que demonstramos um ao outro, retornar para nossos espíritos, que sempre estiveram entrelaçados.
Eu ainda tinha um bom velho carro e uma pequena casa deixada a mim pelos meus pais onde eu me mantinha apenas com o peso dos meus custos. Juntei o dinheiro que me restava e abri uma venda na beira da estrada. Discordava da ideia de que a vida era arrumar um emprego, conquistar o que puder com 1300 ao mês e tentar a sorte de encontrar alguém de temperamento parecido para se surportarem. Agora eu estava em uma jornada, vivendo a vida serena, ganhava muito pouco admito, mas nunca tinha sido tão feliz quanto nos meses que se passaram. Eu abria minha venda pela manhã e encerrava o expediente a tarde, me encontrei e conversei com pessoas fantásticas, com coisas boas a contar, histórias de vida que agregavam mais valor a vida. Era uma forma de reafirmar a vida a minha frente. A cada história, a cada vez que eu me sentia mais vivo, eu lembrava de Jalia, falava dela para a vida e enviava por meio de alguma mágica da vida, minhas mais sinceras boas energias para ela. A esperança tomava conta do meu coração, guiava aqueles dias que se passaram com a possibilidade misteriosa e duvidosa de encontrá-la. Voltar para o antes. Mas dessa vez melhor ainda, com mais experiência, paciência e aprendizagem. Eu saberia dar todo o valor que ela merecia ter. Eu vendia pastel e caldo de cana, me tornei aquilo que ela adorava, aquele velhinho que mais parece alguma entidade folclórica do Brasil que nos fornece a bebida dos deuses por alguns trocados. Foi marcante pra mim saber que o primeiro caldo de cana que ela bebeu foi comigo, eu insisti muito pois ela não queria. Disse sempre que não iria gostar. Mas a primeira vez foi incrível, nós rimos juntos e eu disse que sabia que ela iria gostar, um dia tão gostoso como o gosto do caldo de cana.
Eu nem percebi, mas estava se criando algo novo ali. Eu não sabia o que, mas era algo pelo qual se valia a pena viver.
Após o nosso término, Jalia passou a ser um fantasma, ela é uma visão, que eu levo comigo. As vezes parece que sou um sobrevivente de um outro tempo, que eu perdi tudo o que tinha, o que eu era. Mas também percebo que mesmo antes eu nunca tive nada, que sempre fui esse eu mesmo, então o que eu perdi?
E ela sabia que eu gostava de as vezes, pegar um dia para conhecer uma cidade pequena da região, tomar um capuccino na cafeteria e encontrar um bom lugar para admirar a serra. Então estava no meu bom carro dos anos 2000 admirando o nascer do Sol na estrada. E ao ouvir nossas músicas que gostávamos eu pensei "parece que o vocalista está cantando com um peso enorme do que sentiu. O que será que ele deve ter vivido, quais sensações experimentado. Me parece experiência vivida de quem já está cansado, uma boa música pra mim agora." Lembro de ter pensado isso quando estava ouvindo "Pearl" da banda "Chapterhouse" uma música que ela adorava. Queria compartilhar essas pequenas reflexões com ela agora, essas pequenas coisas me fazem falta. Mas sei que de certa forma estou compartilhando, ao estar presente de minha pequena Jalia interna. Ao ver a serra de longe eu pensava em estar lá em cima, sentindo ter conquistado o mundo. O dia se passou como viver de novo em uma boa época que acabou, mas que eu não queria que tivesse acabado.
De volta a rotina normal de uma vida serena eu estava a mais um dia de trabalho, esperando uma cliente, que nunca apareceu. Mas que minha pequena Jalia interna sempre dizia que iria aparecer. Eu observava o mover da minha sombra me acompanhando, e então imaginei uma sombra a mais, em um teatro de sombras, com certeza havia esperança envolvida nessa dança. Foi quando uma cliente chegou, lembro de nessa hora estar tocando "Kids" da banda "Current Joys". Era a prima de Jalia, que surpresa agradável! Eu gostava dela, Tainara. Passamos a conversar e foi bem agradável, até eu perguntar como estava Jalia. Então ela me mostrou uma foto, ela estava grávida. "Uma criança..." Eu disse. E ali meu olhar se perdeu. Toda a depressão reprimida eu senti, de uma vez só. Meu mundo sereno caiu. Meu propósito foi tirado de mim, roubado! Um filho! Era demais para meu coração esperançoso aguentar. Meu mundo espiritual não existia, era apenas eu tentando enganar a verdade. Voltar é um conceito grande demais, que não existe e foi alimentado pela esperança. Nada poderia trazer de volta a sensação de estar junto dela em meio ao mar de estrelas. O mundo era sim aquela imagem aleatória perdida no tempo cheio de coitados sujeitos a morte. Crianças no espaço. Eu não queria mais sair lá fora, não valia a pena, não tem nada pra mim lá, e eu já não tenho mais energia nenhuma para querer conquistar lá fora. Estou desolado, rendido, entristecido, jogado no chão. Chorando pelos cantos, esbarrando nas paredes. Eu saio lá fora, me sinto rendido! Estou perdido. Desse dia em diante, todos os dias que eu vivi, teriam sido melhores se eu tivesse vivido de olhos fechados, pois todas as imagens que se passaram, eu só vi passar.

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