Vez ou outra tento olhar para o outro lado, mas ainda sim dá para ouvir os gritos, é desesperador, úmido, frio e borrado. Acordo daquele pesadelo terrível em um susto. Tateei a mesa de canto até encontrar o interruptor do abajur. Retiro os óculos de meu rosto suado tentando normalizar a respiração. Conto até sete em inspirações espaçadas e ao mesmo tempo tento afastar as imagens e os sons da minha cabeça, não me preocupo com o livro caído ao lado da cama, suas folhas agora levemente amassadas onde parei, alguma obra de Emily Dickinson, poemas traduzidos, era um maldito habito e os óculos preso entre meus dedos agora já entortado outra vez. Maldição!
Era sempre a mesma coisa. Minha infância, ou parte dela, não sei ao certo se realmente aconteceu ou se foi apenas uma fantasia, algo que inventei apenas para me torturar. Penso que, talvez a saudade de estar perto de meus pais esteja fazendo isso comigo. No sonho, é bem lúcido, estou esperando sentada nos degraus da porta da frente, usava um vestido verde e estava descalça. O coelho de pelúcia sentado ao meu lado, levemente inclinado para o lado, lhe faltava um olho de botão, uma velharia. No sonho me perguntava porque ele estava triste. Mas ele só estava ali sentado, estático e sem vida.
Estava sozinha, em partes, não havia ninguém à minha vista, porém a sensação de haver mais alguém rondava ali, não algo ameaçador ou qualquer coisa do tipo. Quando acordo, digo a mim mesma que era a babá, uma criança não podia ficar sozinha por tanto tempo, então o mais lógico a se pensar era que a mulher, a responsável no momento estava dentro da casa enquanto que eu permanecia à espera de minha mãe nas escadas.
Pareço esperar uma eternidade, fito meus joelhos ralados e acho uma boa ideia retirar algumas casquinhas, as bolinhas de sangue começam a se formar novamente e rapidamente as limpo com a ponta do vestido. Então ela aparece, ouço primeiro o som do carro, e então a porta batendo, barulho de sacolas do mercado e então ela está ali. Apesar de estar feliz por vê-la não movi um músculo para ajudá-la, estou triste. A princípio não sei com o que, e então ela informa, e então me lembro.
- As vizinhas de novo? - Afirmo que sim com a cabeça.
Quando estou lúcida e acordada não me recordo o porquê de estar tão chateada, mas o que poderia chatear tanto uma criança de sete anos? Minha mãe sempre soube o que dizer para que me sentisse melhor, era um dom.
- Você disse que não era para eu ir, e eu fui. Elas disseram que dessa vez íamos brincar de esconder e que iria ser legal, e que iriam vir me achar depois, mas elas me deixaram lá sozinha. - As palavras proferidas chegavam alta em meus ouvidos, mesmo mantendo o tom. - Eu não deveria ter ido.
- Ursinha, toda vez que estiver se sentindo mal porque julgou uma situação errada tente se lembrar do poço da rua Broad na Inglaterra. Sabe o que é um poço? - Faço que sim com a cabeça e ela se senta ao meu lado, parecia cansada. - Diziam que a água daquele poço tinha um gostinho melhor, então os outros, de diversos bairros, iam lá só para provar daquela água especial, porque diziam que era a melhor. Depois de um tempo foi descoberto o que tinha naquele poço, e não era algo bom.
- O que tinha lá?
- Cólera! Você sabe o que é isso? - Penso antes de responder.
- Uma doença? - Ela acena que sim com a cabeça. - Eu não entendi.
- Muitas pessoas morreram. Foi uma época bem triste e complicada. O que estou tentando dizer é que, você nem sempre vai fazer as melhores escolhas, e tem que tomar cuidado para não ir pela opinião dos outros, tudo bem?
- Então o que eu fiz não foi tão ruim porque ninguém morreu? - Ela riu se levantando em seguida.
- Isso, mas tem que tomar cuidado, nem sempre vou estar aqui para tomar as decisões por você. Nessa vida haverão muitas pessoas que irão mentir para você, poderão até dizer que o que vão fazer é legal ou até mesmo te convencer de que aquilo é o melhor para se beber, mas só você sabe o que é melhor, e o que a mamãe fala que é melhor e seguro! Essas meninas não sabem o que estão perdendo. Então, quer me ajudar a levar isso para dentro? Trouxe algo que vai gostar.
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Procura-se
FanfictionO que fazer quando se encontra um celular no metrô? Gizelly, uma jovem professora de literatura, pensou que o dono logo apareceria, mas depois de semanas sem noticias sua curiosidade para encontra-lo falou mais alto. O que será que encontrará nessa...