Eu não faço tratamento com psiquiatra, mas se eu fizesse, certamente ele mandaria eu passar para o papel as minhas frustrações. Eu estaciono melhor do que dirijo, mas hoje eu tentei duas vagas e a segunda era gigante, mas eu não fui capaz de estacionar corretamente. Eu não sou palhaço, eu atuo melhor nos bastidores. Depois que a platéia for embora eu vou lá e arrumo o carro, que se dane. E só vou acertar o carro que é para não estragar o pneu que está encostado no meio fio, não para satisfazer os espectadores como se fosse compromisso meu estacionar de forma adequada. Atravesso a rua e chego ao curso pré-vestibular. Fica no último andar e a aula já começou.
Enquanto isso, o experimento científico que pretende recriar o Big-Bang e provar a existência da tal partícula de Deus está em andamento, dizem que hoje alcança a velocidade da luz. Ainda há esperança de que um buraco negro consuma a todos nós, ou que haja qualquer outra tragédia de proporções gigantescas que venham a determinar uma nova era, ou o fim de todas elas. Amém. Quem sabe o experimento mal sucedido não tenha consumido boa parte da luz que cerca o planeta Terra? Talvez esta noite dure para sempre.
Eu não sei se estarei vivo para relatar a seqüência de acontecimentos que precederam e causaram a minha morte, portanto, acho bem apropriado começar a narrar de antemão o meu trágico fim.
É noite, ainda. Os relógios medem um tempo que já não mais funciona. E quem há de consertá-lo? Não. Nós só temos ferramentas para consertar aquilo que não está quebrado.
Eu gostei mais assim, afinal, detesto calor. Eu teria passado perrengue se o aquecimento global tivesse prosperado. Agora já não há calor, já quase não há luz. Melhor assim, muito melhor, mais tranqüilo. As trevas cegam e a luz ilude e seduz. Confio mais nas trevas e nas pessoas que nela enxergam o quanto são cegas. Há um pânico calado no ar, ninguém sabe exatamente o que aconteceu ainda, entretanto, todo mundo sabe, e eu sei que sabem, que tudo acabou, que é hora das mães abraçarem suas crianças e cantar-lhes uma canção de eterno ninar. Das calçadas e das janelas acima, e das janelas acima das janelas sussurram-se inquietações lamentosas, o desespero é reprimido pela dúvida desconsolada. São todos parte de uma platéia que assiste ansiosa o próprio espetáculo. Todos providos de um pavor com um tantinho de curiosidade, uma triste e súplica curiosidade funesta. Quero ir embora do centro da cidade antes que a crescente dúvida preocupada dessa gente seja saciada e a verdade lhes desperte desespero e eu fique sufocado no caos.
Eu dei seta para a esquerda com o objetivo de sair da vaga, mas ninguém estava se importando com as formalidades do trânsito. Então, que se dane. Liguei a seta para a direita e subi na calçada. Eu queria muito ter a certeza de que o mundo dessa vez realmente acabaria, assim eu poderia atropelar a multidão como se fossem pinos de boliche, como se Deus ou o diabo estivessem jogando boliche usando meu carro como bola, meu carro parece, de fato, uma bolinha de boliche. Qual o problema? Eu não viveria para sentir a culpa me acusar dia e noite. Mas na falta de certeza a respeito do fim dos tempos, vai-se também a diversão.
Fui dirigindo de vagar, abrindo caminho em meio a multidão ao longo da calçada. A essa altura já saíam da frente instintivamente, aceitando com naturalidade um carro trafegando pela calçada. Quem há de me multar? Uma catástrofe implacável vinha sorrateira censurar a todos. Os sujos não se deram ao trabalho de falar do mal lavado dessa vez. E, ao olhar pelo espelho retrovisor, vi que outros “mal lavados” me imitavam, tive que rir. Mais à frente, a rua de mão dupla estava menos movimentada, que alívio. Mas eu ainda podia sentir a aflição no ar, como se o medo e a tensão estivessem impregnados em cada partícula de oxigênio e isso me enchia de uma mórbida sensação de alívio, de conforto. Enquanto dirigia, ouvindo os conselhos de Alanis Morissette no mp3 player, que agora soavam um tanto fúnebres e lamentosas demais naquele contexto de degradação dos dias naquela única noite interminável. “That I would be good”, ela dizia enquanto eu tentava, agora, me lembrar onde estive e o que andei fazendo entre as seis e meia da tarde (hora em que estacionei, pessimamente, o carro em frente à portaria do prédio do cursinho sob o olhar inconveniente de uns funcionários de uma loja de roupas baratas) e o horário que meu relógio marcava agora, seis e meia da manhã.
Eu podia ver o sol erguendo-se por detrás das montanhas, estava fraco, quase morto. Era possível agora fixar-lhe os olhos, era como vê-lo nu, era constrangedor, ver um rei, outrora destemido, temido e respeitado, que agora estava despido de sua luz. Parecia uma lâmpada prestes a queimar. A cidade estava com um aspecto encardido, feixes de luz amarelas, amarronzadas e amarguradas clareavam, lúgubre, as avenidas. Sombras soturnas e fantasmagóricas assombravam as calçadas e esquinas.
Estacionei o carro em frente ao portão da garagem da minha casa. Moro à cerca de 30 minutos do centro. Um bairro residencial bem tranqüilo. Péssima vizinhança, o que quer dizer que vivo em paz com meus vizinhos. Meu cachorro veio me recepcionar como de costume. Não importa se é o fim do mundo, ele ficou feliz em me ver. Eu o abracei, não por ser provavelmente a última vez, mas simplesmente porque eu o amo, sob quaisquer circunstancia. A simplicidade da natureza me fascina, às vezes penso que o ser humano não faz parte da natureza, é como se nós fôssemos um mecanismo de autodestruição, uma arma de suicídio, como se a natureza fosse Deus e nós o diabo, somos a quimera do mundo e de nós mesmos.
Meu cachorro havia sido educado a nunca entrar dentro de casa, mas dessa vez, a palavra nunca deixava de ter algum significado. Eu abri a porta e entrei, ele em meu encalço. Entramos pela porta da sala, em silêncio sepulcral, o clima era de que, seja lá o que fizéssemos, faríamos pela última vez, e não obstante, sabíamos, que nada faríamos. Minha família estava na sala, todos sentados no sofá. Ninguém reclamou da presença do cachorro ali. E olhando ele ali, todos sentíamos em nosso íntimo que o cão que vagava perdido pelo jardim todos os dias, carente de atenção, era o mais sensato dentre todos nós ali. Era o único que de alguma forma, parecia reagir com naturalidade àquela situação dotada de uma turva insolubilidade fantasmagórica. Meu cão estava imbatível, agora, no fim de todas as coisas, enquanto todos estavam fragilizados, confusos e com medo. Em circunstâncias corriqueiras meu pai teria jogado o chinelo no cachorro espantando ele, mas não hoje.
Em pé na sala de jantar olhei por cima do meu ombro esquerdo, meu olhar transcorreu a cozinha, cuja porta estava aberta, e atravessou a janela no fim da cozinha e se perdeu na escuridão armagedônica onde deveria estar a varanda da vizinha.
— Mãe, cadê a vizinhança? — perguntei, imergindo ainda mais o olhar na escuridão que consumira toda a vizinhança rua acima.
Meu pai pegou o carro dele, com minha mãe no banco do carona, meu irmão no banco detrás e o cachorro na mala. Eu peguei meu carro bola de boliche, ao abrir a porta do carro olhei para a rua, ela acabava à uns dois metros acima da minha casa. Além, só havia escuridão. Um nada infinito e sombrio consumira tudo naquela direção e agora avançada lenta e inexoravelmente para engolir minha casa. Entrei no carro e segui meu pai rua abaixo. Lá embaixo, ao virar para a esquerda ia-se para o centro da cidade e a estrada para o município vizinho ficava para a direita. Meu pai arrancou com o carro para a direita. Para não o perder de vista arranquei também às pressas. Bati de lateral com um carro que vinha na rua cruzando a estrada à minha frente, da esquerda para a direita. O carro foi, por mim, jogado na contramão e atravessou a pista oposta até colidir com um poste no ponto de ônibus. O poste caiu sobre algumas pessoas que ali se encontravam. Segui em frente, seguindo de perto o meu pai, dei uma olhada preocupada no espelho retrovisor e vi que um carro que vinha na mão oposta entrou na minha pista, na tentativa de desviar do carro que eu havia jogadona pista dele. Este, acabou colidindo de frente com uma caminhonete. Antes de voltar minha atenção para frente pude vislumbrar um motociclista rodando feito um boneco de borracha lançado ao ar. Olhei para frente e não vi mais o carro do meu pai. Desesperado, olhei ao redor e, ao olhar involuntariamente para trás, vi alguns veículos que despencavam no infinito. O mundo estava acabando, eis aí a certeza que eu procurava. Um nada gigantesco consumia o planeta, e ao seu toque sutil e feroz, a matéria se desintegrava e deixava de existir. E agora, porque estaria eu lutando pela minha vida? Eu sempre quis deixar de existir, eis a minha oportunidade. Movido por uma curiosidade suicida, provavelmente decorrente da euforia que o fim do mundo despertara em mim, eu manobrei o carro, invadi a calçada na contramão e segui na direção oposta, fugi da salvação, fugi para o perigo. Todos estavam deixando a cidade enquanto eu ia à toda velocidade para o centro, como um herdeiro que às pressas cavalgava sobre quatro rodas para reclamar seu trono. A pista à minha esquerda já não existia mais, meu carro seguia com dificuldade. Duas rodas na calçada e as outras duas na metade da meia rua que sobrava. Acelerei o máximo que pude, quase despencando naquele precipício cheio de um vazio ameaçador à minha esquerda. Impossível descrever o que vi, pois vi tudo o que o nada absoluto pode ser. A vertigem me dominara e queria me jogar lá dentro, mas a adrenalina e a vontade de existir um pouquinho mais, só para contrariar o destino, foram mais fortes. Um pouco mais à frente o mundo parecia intacto e fazia aquele destino predador implacável parecer coisa do passado. Enfim, ali, o fim não estava presente mais, ou ainda. Não importa.
Um silêncio mortífero dominava o centro. Somente três sons pareciam haver no mundo inteiro: o som do motor do meu carro, do mp3 player do carro e, por fim, e mais assombroso de todos, o som do sol, um fraco zumbido enferrujado. Diminuí a marcha e dirigi devagar no cenário apocalíptico no qual minha cidade se transformara. No mp3 player do carro tocava uma música triste e infeliz, tragicamente apropriada, cujo refrão dizia num tom que parecia debochar de mim: “the end of the world is nothing new to you”. Mas era verdade, percebi que era. O fim do mundo não era nenhuma novidade para mim. Eu sentia agora uma insólita tranqüilidade nostálgica enquanto dirigia pela cidade fantasma que sempre desejei, sabendo que dentro de algumas horas o mundo já não mais existiria.
Vi uma cena corriqueira, porém, estranhamente corriqueira, aliás mais corriqueira do que deveria, na verdade. Vi um cachorro amarelo caminhando, indiferente aos calafrios que as sombras exalavam com tanto vigor. Indiferente ao silêncio que precedia o fim implacável e inevitável que se arrastava ao nosso encontro. Cheirava uma saca de lixo no canto da rua, na beira da calçada. E eu podia prever cada ação dele.
— Não tem nada pra você aí, rapaz. No açougue tem coisa melhor. Te garanto que ninguém vai te reprimir hoje.Ele não me ouviu, pois falei baixo, mais para mim do que para ele. Mas ele obedeceu, abandonou a saca de lixo e seguiu em frente. Eu o acompanhei lentamente com o carro e, um pouco mais à frente havia um açougue repleto de carne e linguiça.
— Bom apetite. — desejei. E segui em frente ao som da música Out of Tears, dos Rolling Stones.Bom, tudo me parecia estranhamente familiar, mas não era um déjà-vu, muito embora, agora, toda a minha vida parecesse ser. Fiquei aflito. De alguma forma eu sabia que o fim vinha, mas nunca terminaria. Desde quando eu desviava daquele gato na tal curva do sabão e quase colidia com a coluna que dividia as duas vias? Desde sempre. Eu sei que o tempo está ecoando eternamente, por causa daquele acidente do LHC. É desde hoje que o tempo ecoa desde sempre.
Decidi passar pela rua do cursinho. Sei que não havia muita coisa para se ver por lá. Sim, sei que não haverá novidades hoje. Estaciono com certa dificuldade sob o olhar urubunesco de funcionários desocupados de uma loja de roupas baratas. Entediado, eles clamam por emoção em um silêncio tão profundo que nem eles são capazes de saber. Só podem sentir a satisfação de ter sua necessidade por uma pequena dose de caos para quebrar a rotina ser saciada. Deixo o carro torto mesmo, hoje não estou com paciência. Acredito que se eu fizesse tratamento psiquiátrico, provavelmente meu médico me receitaria registrar em algumas linhas (pra ser sincero, no meu caso, muitas linhas) o excesso de pensamento que habita minha mente. Pois todas essas preocupações e pensamentos sensatos enferrujados obstruem a felicidade dos pensamentos simples. Mas, eu nunca fiz tratamento psiquiátrico e sei que nunca vou fazer, assim como eu sei que não estou morto ainda e jamais estarei.
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Ecos
Short StoryE se o experimento para recriar o Big Bang nos aceleradores de partículas, localizados sob a França e a Suíça, em 30 de março de 2010, tivesse dado errado? Um aluno de curso pré-vestibular fica preso em um dia condenado a ecoar eternamente dentro de...