Capítulo 1

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As luzes do relógio digital indicavam seis horas. Verificou os ponteiros do velho relógio que havia sido pregado a parede de qualquer jeito: eles também marcavam seis horas. Empilhou os livros e cadernos de forma preguiçosa apenas os enfiando na mochila que logo colocou no ombro esquerdo. Seus olhos pesavam e seu corpo pedia por cinco minutos na cama, porém teve que retirar forças de algum lugar para se dirigir a grande janela que havia no cômodo e fecha-la.

Foi necessário se debruçar sobre o peitoril para alcançar uma das venezianas e ouviu algo que chamou sua atenção. Era um barulho, algo baixo que não conseguia identificar, mas sabia que se aproximava da cidade. A cada segundo ele se aproximava mais e mais. E então já sabia do que se tratava. Era o motor de um carro e não demorou para que lá no alto da colina, que protegia a cidade, surgisse um carro vermelho.

Um visitante? Isso não era bom.

Bateu as venezianas as trancando com cadeado, puxou as cortinas para o centro da janela com força e rapidez, em pouco tempo estava do lado de fora trancando a porta com uma cara emburrada. Já havia coisas o suficiente em sua cabeça, não iria se preocupar com um coitado desavisado. Isso era problema das autoridades. Guardou o conjunto de chaves no bolso e deu início a sua caminhada.

Tinha que seguir na estrada, pois naquela parte da cidade não havia calçada. Em meio a pensamentos turbulentos parou ao lado de uma falha na vegetação as margens do asfalto. A vegetação rasteira excessivamente alta e as poucas flores que ousavam crescer por ali haviam sido amassadas e já estavam secas. Ainda se lembrava vivamente do que ocorrerá ali, aliás não haviam se passado nem duas semanas. Se lembrava do sol se pondo e do vento gostoso que lhe causou arrepios. Também se lembrava dos sorrisos e das risadas, dos toques carinhosos e das juras de amor. Sua mão direita chegou a se mover poucos centímetros querendo tocar ali, mas logo a recolheu discretamente e continuou o caminho com uma expressão séria. Não havia mais motivos para sorrir. Não existiriam mais dias de primavera como aquele. Disso tudo só havia lhe sobrado o inverno solitário e o outono melancólico. Talvez estivesse melhor no verão. Entretanto, uma parte pequena em si tinha plena certeza de que o verão nunca chegaria enquanto outra igualmente pequena berrava que tudo que precisava era de uma limonada e sentir o sol quente queimando a pele, o resto era confusão. Grande parte de si não havia processado os últimos acontecimentos, ou apenas não queria processa-los.

Uma buzina alta soou ao seu lado e lhe assustou levemente. E agora parando para pensar, talvez a tivesse ouvido duas ou três vezes antes enquanto formulava alguma linha de raciocínio logico.

– Finalmente – resmungou o homem relativamente jovem que conduzia o carro vermelho e lhe estendeu um pedaço amassado de papel. – Sabe para onde fica esse endereço?

Esticou o pescoço minimamente e conseguiu ler. Sabia aquele endereço. E sabia que ficava na cidade. Cidade esta que aquele homem não poderia ir.

–Sei, mas deveria ir embora.

O homem bufou e retirou do bolso uma carteira balançando uma nota de vinte no ar. Esboçou um sorriso forçado e continuou seu caminho repetindo internamente que aquilo não era problema seu. O carro seguiu ao seu lado e parou um pouco mais a frente, dando tempo para aquela figura se colocar bem no meio de seu caminho, agora com uma nota de cinquenta em mãos. O contornou com um suspiro cansado.

–Quanto quer? Posso te dar cem, duzentos...

–Não deveria falar com estranhos – soltou mais como um conselho a ele do que um lembre para si.

O deixou falando sozinho, não se importou com ele resmungando algum palavrão e muito menos quando o carro vermelho passou por si em alta velocidade. Revirou os olhos com tamanha infantilidade.

Aquele homem ao menos sabia onde estava? Provavelmente não, eles nunca sabem.

Bufou e colocou os fones com qualquer música aleatória no volume mais alto, dentro de si existia uma voz inquieta e não poderia dar ouvidos a ela. A voz enchia sua cabeça de questões sobre o visitante. De onde viera? Para aonde ia? Quem era? O que fazia ali? Por que cheirava a menta e cigarro? Ele fumava? Tinha esposa ou namorada? Filhos talvez? Qual seu nome? Qual sua idade? O que fazia da vida?

E em meio a tantas perguntas uma pareceu se destacar.

Ele cheirava a menta e cigarro?

Buscou na memória de poucos minutos atrás e quase pode sentir o forte cheiro de menta invadir suas narinas e ao fundo um leve e fraco odor de tabaco. Por que tinha esse cheiro? Provavelmente estava tentando parar com o vício ou disfarça-lo para alguém. Mas quem? Deveria ser alguém importante.

–PORRA! – gritou em plenos pulmões.

Havia dado ouvidos a sua voz interior. Deixou a mochila escorregar de seu ombro e se sentou ali mesmo com as mãos tapando os olhos e a cabeça entre as pernas.

–Não é problema meu, não é problema meu, não é problema meu...

Repetia incessantemente a frase como um mantra. Passou bons minutos ali até que a dúvida surgiu: O que não era problema seu?

O visitante do carro vermelho que cheirava a menta e a cigarro.

Esticou as pontas dos dedos até primeiros fios de cabelo que encontrou e os puxou com força enquanto repetiu mais vinte ou cinquenta vezes sua atual frase favorita. Só parou quando o barulho alto de um trovão ecoou. Ergueu o rosto aos céus e seus olhos agora mais úmidos foram iluminados pelas diferentes tonalidades de cinza que rugiam. Aquela seria a última chuva da primavera e a única do inverno que iria se seguir.

Permaneceu lá. Imóvel. E deixou que as gotas da chuva lhe atingissem, com elas seu vazio aumentou e a tempestade que antes era só lá fora se tornou interna. Memórias que eram alegres alimentavam sentimentos nebulosos como a água que evapora alimenta as nuvens. Tais sentimentos culminavam no caos interno que rugia em fúria e amargor. Então choveu, mas não lá fora. Lá fora sua pele já estava gelada pelas gotas de água externas que roubavam seu calor e sua roupa estava colada ao corpo. Choveu dentro de si. E as gotas de água interna se misturaram as externas. Continuou ali. Imóvel. Com a vista embaçada focalizando o nada.

Por quanto tempo isso iria continuar? 

Frequência ZeroOnde histórias criam vida. Descubra agora