AS SANDÁLIAS DA NOEMI (ou A Rainha Da Bateria)

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AS SANDÁLIAS DA NOEMI

As sandálias não eram de couro, porém, Noemi queria, porque queria, aquelas sandálias. Eram imitações de couro, mas não fazia mal. Noemi amara as sandálias. “Foi amor à primeira vista”, dizia para as amigas. Este amor aconteceu há um mês; foi quando ela viu as sandálias numa lojinha na “Rua Principal”. Tinham saltos de 12 cm e tiras que se enrolavam sobre as pernas, indo quase até os joelhos. As tiras ajudavam a engrossar, ainda mais, as pernas da Noemi. Ela sabia disso e gostava.

Noemi comprou as sandálias em seis vezes sem juros (estavam em promoção). Para ela, comprar as sandálias foi uma de suas vitórias.

Noemi era uma mulata da “cor brasileira”; usava os cabelos com cachos miúdos e alourados, como mandava a nova moda. Tinha a bunda empinada, quadris ligeiramente largos e seios médios; vestia sutiã 42 – nunca teve intenção de colocar silicone. “Meus seios são lindos como estão, não precisam ser volumosos”, dizia com segurança. Na cintura, nada de gordura – era sequinha –, a musculatura se fazia notar. A boa forma de Noemi era mantida com ginástica localizada e musculação. Ela se cuidava. Era preciso. Estava chegando o Carnaval, ela tinha que ficar “pronta”.

Noemi trabalhava como gari – trabalho duro. Gabriel, seu filho, ficava com a vizinha, Dona Coroca – “uma mãe para ela e para ele; gente que cai do céu”, Noemi sempre dizia. Ela acordava às 5 da manhã para chegar ao trabalho às 7 horas. Vestia o seu uniforme cor de laranja com orgulho – era com ele que sustentava o seu filho. Ela precisava daquele trabalho. O uniforme não tirava o seu charme: colocava os seus brincões, prendia os seus cabelos num rabo-de-cavalo e, sobre a cabeça, punha o chapéu de abas largas, que fazia parte do uniforme e também era cor de laranja. Enfeitava sempre o chapéu, colocando uma flor – de preferência azul: “É para quebrar a cor do uniforme”, explicava. Sempre maquiada, ela ia à luta. Linda, sempre linda! Encerrava o expediente às 16 horas. Ia para a ginástica, ou para a musculação, e, depois, para casa, cuidar do Gabriel, quando não havia ensaio.

Seu filho, ela havia “arrumando” há quatro anos, num namorico com Zé Sem Dente. Ele tinha esse apelido porque perdera dois dentes da frente com uma porrada que tomara de um policial, numa batida que houve no morro. Zé Sem Dente estava preso e Noemi tinha que cuidar de Gabriel sozinha. Isso, para ela, era mais uma vitória. Mesmo se ele estivesse solto, de nada adiantaria. Zé Sem Dente não trabalhava, vendia drogas na favela; nem chegara a ser um “aviãozinho” (ou “avião” – para quem não sabe, devo explicar: é o traficante que leva a droga para os clientes de fora da favela). Nem no tráfico conseguia subir de posto. “É um incompetente!” – dizia a mãe da Noemi.

Noemi chamou o filho de Gabriel por achar que o nome do anjo fosse ajudar: Gabriel, o anjo, não era só um anjo, mas era um arcanjo, um anjo da ordem superior. Ela achava que estava dando certo. Gabriel, seu filho, a ajudara até agora: ela tinha uma vida feliz. Estava conseguindo coisas, vitórias.

Outra grande vitória de Noemi foi ter conseguido o título de rainha de bateria – disputou com outras cinco candidatas o título que já fora de sua mãe, cujo reinado havia durado 15 anos. Há um ano, sua mãe descia pela ruela quando uma bala perdida a atingiu, interrompendo o seu reinado. Morreu na hora. Quase todos os dias, Noemi, como fazia agora, descia a mesma ruela. Era o único caminho, da sua casa, para chegar até à pracinha, onde ficava a quadra da sua escola de samba. Do outro lado da pracinha ficava a “Rua Principal”, que ia em direção ao “asfalto” (“asfalto”, outra explicação: é a denominação dada pelos moradores da comunidade às ruas que ficam no entorno da favela; o que não é favela é “asfalto”). Diferentemente da ruela que Noemi descia, que é feita de barro batido, como todas as ruelas que formavam a favela, a “Rua Principal” e a pracinha eram de paralelepípedos. Sobre esses paralelepípedos, circulavam carros, motos, pessoas, famílias e traficantes. De longe, todos pareciam conviver na maior harmonia.

Aquele era o dia perfeito para usar as suas sandálias novas. Era dia de ensaio na quadra da escola de samba. Como a sandálias oficiais não estavam prontas, Noemi iria ensaiar com as suas: um bom motivo – que ela mesma criou – para usá-las. Por isso mesmo, já saiu de casa com as sandálias, ornamentado seus pés, suas pernas (ou seriam os pés e as pernas da Noemi que ornamentavam as sandálias?).

Depois daquele ensaio – o último, pois o desfile seria no sábado seguinte –, ela iria encontrar com Rubens, seu noivo. Combinaram de tomar um refrigerante no bar do Marajá. Rubens era um rapaz sério, trabalhador e honesto. “Desta vez, você acertou”, afirmava sua mãe. E ela tinha razão. Noemi sabia. Rubens era primeiro sargento da polícia militar e estava fazendo faculdade de direito. “Ainda vou ser juiz” – dizia ele. “E marginal não vai ter vez”, completava.

Noemi o amava. Estavam de casamento marcado para maio. Mês de Maria e das noivas. A data também fora marcada para esse mês porque os dois estariam de férias. Seria um casamento simples, na igreja local. A festa – um churrasco regado a cerveja e caipirinha – seria no Bar do Marajá, e a lua de mel, na cama da casa de Rubens, que não era na favela. Finalmente, ela poderia criar o seu filho fora daquele lugar. Rubens gostava muito de Gabriel. E Gabriel também adorava Rubens.

Noemi ouviu três disparos. Assustou-se. Morar na favela há 18 anos (ela nascera ali) não a fazia se acostumar com tudo aquilo: ouvir disparos; ver a polícia invadindo a favela e ver os traficantes pelas ruelas, pela pracinha e pela “Rua Principal”, por todos os becos, com as suas armas possantes, vendendo drogas, criando pânico, dominando tudo. Essa era uma rotina que sempre a amedrontava.

Assustada, depois dos tiros, lá ia a mulata, descendo a ruela com as suas sandálias, com os seus planos. Um dos seus planos era ter um filho, talvez até dois, com Rubens!

Seus lábios, seus olhos, sorriam.

Houve mais um disparo. Esse, Noemi não só ouviu, mas sentiu. Atingira a sua cabeça. Noemi tombou. Ao bater no chão, seu rosto, seus lábios sangraram, manchando a sua pele morena. Noemi rolou na descida da ruela, rasgando a sua blusa. A sandália do pé direito teve seu salto quebrado, e soltaram-se as tiras que se amarravam às pernas grossas de Noemi. A sandália ficou distante do pé da sambista.

Mais dois disparos. Esses, Noemi não escutou...

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De período em período, irei colocando um capítulo. Peço desculpas por não poder dizer de quanto em quanto tempo.

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