O Castigo

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Arrastei-me até o topo daquela longa escadaria com uma enorme ferida, tanto no âmago de meu ser quanto em meu corpo. O sangue escorreu por todo o caminho, revelando a trilha desde minha agressão até onde busquei salvação. 

O sentimento de impotência me tomou, o medo corrompeu e a força se esvaiu. O nojo tomava meu ser toda vez que olhava para as marcas, para meu reflexo na água próxima a escada e piorava ao olhar para o sangue que escorria de minha intimidade.

O rosto dele, suas palavras e sua agressão, tudo ficaram marcadas em minha alma como uma profunda cicatriz que jamais some. Em meus sonhos, no meio da escuridão, no ponto mais distante, na água,  eu sinto ainda sua presença, seus olhos me observando. Ele está lá, pronto para me agarrar a força, rasgar minhas roupas, me ferir com seus punhos e satisfazer sua perversidade. 

O majestoso templo foi o único lugar que pensei ir após o ocorrido. Servi tanto tempo a deusa que minha fé me convenceu que ela me ajudaria. Por isso rastejei até o topo daquela escada e resisti à vontade de me jogar na água e por fim a dor...

O ambiente vazio continuava mantendo sua vida, mesmo em tormenta, ali era minha segunda casa e um alívio, mesmo que ínfimo se comparado a minha dor, aqueceu levemente a minha alma desolada.

Com o pouco de força que me restava, levantei-me e caminhei até o altar. Aquele tão conhecido o qual todos os dias dediquei horas de admiração. A cada passo me sentia mais suja, a cada suspiro me sentia me sentia impura, sentia como sendo imoral, pecadora e o medo se apossou de meus pensamentos. Sei que fui forçada, mas o peso da culpa social caiu sobre mim. Sempre fui cercada por aqueles que me desejavam, mas quando precisei de assistência, socorro, restou apenas minha fé.

Frente a frente com a imponente estátua da gloriosa deusa, ajoelhei-me em sinal de respeito e pedido por socorro. As lágrimas molhando o chão fugiam de mim assim como o calor que me abandonava pouco a pouco, deixando assim meu ser com o frio e a solidão, ambos dividindo espaço e destruindo tudo, deixando apenas o vazio. 

Com o que sobrou de minhas forças, clamei:

-Minha deusa, eu te invoco e imploro por ajuda. -A tristeza emanava em forma de gotas ácidas e o calafrio se alastrava por meu corpo violado. -Sirvo desde nova. Sempre trouxe oferendas, todos os dias, sem falta. Desde minha infância fui fiel a minha fé e declarei em todas as oportunidades meu amor por você. -Ao tentar lembrar da cena para explicar o ocorrido, um pânico maior tomou meu ser e senti uma dor violenta que surgiu em meu útero e correu para a saída de onde escorria o sangue carmim. -Sei que você exige, sobre todas as coisas, a pureza de suas servas. O voto de castidade a fim de manter a pureza é o maior ato de devoção a ti e eu mantive isso, mantive até onde fui capaz... - ao fechar os olhos buscando forças para continuar, fui atingida por flashes do que ocorreu e me senti tão impura quando um pedaço de carne largado aos vermes. -Um ser perverso me forçou... tentei, tentei minha deusa, tentei lutar, mas olhe para mim. Sou fraca já perante os mortais, nada consegui fazer contra um imortal. Ele arrancou de mim a liberdade de escolha, arrancou de mim a segurança, arrancou de mim minha pureza e abalou minha visão de mundo...

Às lágrimas escorriam e juntavam-se ao sangue se espalhando pelo chão daquele lugar sagrado. As feridas abertas ardiam com o ar e a força se esvaiu de mim tamanho foi o ferimento tanto moral quanto físico. 

-Por favor minha deusa, eu imploro. Sei que nada podia fazer, mas me perdoe por não ser forte suficiente contra Poseidon... Atena, peço-te, perdoe a mim e me dê força para superar essa violência, me dê força para continuar e me ajude a me reconstruir e continuar sendo sua serva, minha amada deusa.

O silêncio tomou a sala com o último ponto de minha fala. Nenhuma resposta e minha força esvaiu. Caí no chão e ensopei o resto que sobrou de minhas vestes com o carmim fluindo. Por que? O que fiz para merecer? O devaneio me jogou a altura de juíza, advogada e vítima ao mesmo tempo.

De repente uma voz preencheu o ambiente e me chamou. De imediato, não reconheci, mas ao olhar melhor, vi que era ela: minha deusa.

Ela estava com sua armadura e sua presença resplandecente expulsava do ambiente a escuridão. Uma faísca de felicidade surgiu em mim.

Ela me chamou pelo nome e esticou seu braço esquerdo, fazendo sinal para que eu fosse a seu encontro. Sem pensar, rastejei até ela e abracei suas pernas. Minha fé se mostrou real.

-Olá minha jovem. -sua voz ecoou imponente. -eu ouvi sua prece. 

-Veio cuidar de sua serva? -Um sentimento quente percorreu meu interior, por um breve momento a dor passou. -Muito obrigada, Atena. 

-Vim fazer mais que isso... -disse ela com rancor na voz. -Vim punir aquele que causou toda essa desgraça e profanou aquilo que é sagrado a mim.

-Você vai enfrentar seu tio, o poderoso Poseidon? -Questionei impressionada.

-Não. -Ela tirou o elmo e respirou pesadamente. -A culpada é você!

Se meu mundo tinha se estilhaçado com a violação,  as palavras delas foram como a ventania impetuosa que varreu os últimos vestígios de um coração partido e humilhado. 

-Por que eu? -Questionei desolada.

-Sua beleza era alvo de admiração entre os mortais e imortais e você se ofereceu a eles, não se deu valor. Nunca censurou o motivo de suas frases.

-Mas como posso ser culpada pelas ações que não são minhas? -Retruquei arrasada.

-Não bastando isso, deixou-se  ser tocada por Poseidon. -Ela bufou. -Como resguardar a fama de minhas servas aos olhos dos mortais diante disso? Como escapar do julgamento deles?

-Mas... Atena, eu fui abusada, nada pude fazer. Não foi resultado de minhas escolhas, sou vítima e não criminosa. -Protestei.

-Mentira! -Praguejou. -Isso é uma vergonha. 

-Não! -Gritei com ódio. -A vergonha é dele que feriu uma inocente. Não tenho culpa, mas ele tem e é totalmente responsável pelo seu ato, pela sua falta de respeito e pela violência!

-Cale-se -Ela gritou e me acertou com um tapa.

Mal encostei no chão gelado e fui erguida pela mão dura de uma guerreira alienada. Com sua violência ela agarrou meu pescoço e senti o firme piso desaparecer de meus pés. Às lágrimas despencavam rumo ao solo e passavam de relance pelas minhas pernas suspensas. 

-Sua vontade de chamar atenção atraiu isso. 

-Não. -Usei a força de minhas mãos para firmar meu corpo e respirar. -Nunca busquei atenção e jamais desejei. Como posso ser acusada de querer para mim essa humilhação? Quem devia ser ameaçado era ele. Quem devia sofrer repúdio dos mortais, era ele. Quem é o único culpado, é ele!

Com minha última palavra, fui arremessada ao ar como se fosse um bicho qualquer. Meu corpo se chocou contra o chão e senti uma costela partir.

-Você é culpada. -Disse com ódio. -Afinal, ele estava apenas seguindo sua natureza de homem e você o seduziu com seus encantos.  -Ela caminhou até mim com um olhar maligno e um semblante diabólico. -Agora será punida. Os seus cabelos tão admirados e que você tanto se orgulhava, agora serão terríveis cobras. Sua beleza magnífica? -Ela emanou um sorriso sádico. -Você será tão horrível que quem ousar contemplar, se tornará pedra. Sua voz que se assemelhava ao cântico doce, agora não passará de um grunhido animal. Você está recebendo o que merece, pois nunca foi nada mais do que uma cobra, Medusa.

Com sua praga proferida, a deusa injusta desapareceu junto ao resquício de fé que sobrava...

Desolada, largada à própria sorte, isolada longe dos outros e sem companhia alguma, me transformei em um monstro resultado das ações alheias. Tudo que me restou foi o lamento e o medo. Meu maior medo é quantas de mim há e quantas ainda virão, quantas Medusas ainda existirão...

MedusaOnde histórias criam vida. Descubra agora