Tendo tanto o que te falar, mas sem saber como dizer: escrevo-te silêncios. Esse texto não é em versos, pois versos requerem um certo ritmo que em nada representariam a arritmia que sinto agora em meu polegar, que agarra essa caneta como uma última esperança. Esse texto não tem rimas, porque estas só surgem, ainda que minimamente, de maneira pensada e essas minhas palavras são um refluxo. Involuntárias e contrárias a todo o fluxo do que se passa entre nós dois nesse momento. Esse texto é sobre o que se passa em mim, diante do que se passa entre nós dois. Esse texto vem sendo escrito há tanto tempo e parece nunca terminar. É que meus silêncios pesam e nada é tão angustiante quanto o peso das palavras não ditas. Você que conhece tanto o meu interior que parece que, literalmente e não só metaforicamente, vive dentro de mim, talvez entenda e me perdoe. Esse texto não é para apontar culpados, pois esses não existem. O fato é que você, que tanto me deu alegrias profundas e infinitas, agora me causa certas tristezas. Tristezas que em parte vêm de ti, mas em parte são tristezas que já estavam aqui dentro e resolveram pegar carona. Você sabe como a tristeza me é fácil, como é para tantos o riso. E você sabe também que todas essas feridas que carrego me tornaram um pouco mais tolerante à dor. Um pouco. Entenda, então, porque essa tamanha dificuldade de expressar para ti, essa dor tão particular que agora aflora em mim. O que torna difícil mesmo, na verdade, não é a particularidade da dor, mas ela ter sido causada por você. Não confunda, no entanto, minha sinceridade como uma tentativa de culpar-te, visto que esse texto, na verdade, nem mesmo é para ti. Escrevo esse texto para tirar de dentro de mim os cacos de vidro quebrado, do porta-retratos que guarda a foto de nós dois. Escrevo esse texto para que a gente não se perca no meio desses escombros que você nem sabe que deixou. A verdade é que te amo e isso faz parte também da minha tristeza. Amo-te tanto, e de forma que me parece tão humanamente impossível, que dói. Dói não como doem os outros amores, por saudade ou falta de reciprocidade. Tu me amas e vives em mim e isso é uma certeza. A dor, no entanto, permeia essa certeza. O problema das certezas é que nem sempre elas são certas. E não há preparação para o incerto. Por isso minhas feridas, de nada serviram dessa vez, para lidar com as recentes surpresas que me causastes. Como posso eu, diante de tudo isso, atribuir culpas? Mais que isso. Como posso eu, diante de tudo isso, diante de você, diante de nós dois, querer atribuir culpas? Culpa-se quando espera-se um pedido de desculpas. De nada me serve culpar-te então. Continuo a amar-te, ainda de forma avassaladora, o que torna mais difícil as transformações que se fazem necessárias para que continue a existir nós dois. É uma metamorfose infinitamente dolorosa a de sentimentos que são como avalanches. Mas me proporciono esta dor como uma crucificação, ainda que sem todo o reconhecimento e gratidão posteriores – apenas por falta de analogia mais apropriada. Eu te amo, e quando falo “te”, não me refiro a tuas atitudes, a tuas palavras, ao teu físico ou ideias, apesar de amá-los também. Refiro-me a todos os “te” que te vi ser até então – eu não sei se você sabe, mas eu amei cada um. Refiro-me ao “te” que me viu ser todos os “me” que fui e sou até hoje e que ainda me garante que amará os “me” que eu vier a ser. Quando digo que te amo, eu quero dizer que eu amo nós dois, eu com você e você comigo. As circunstâncias que afetaram imagens que ultimamente venho fazendo de ti e que me surpreenderam e machucaram, em nada afetaram esse amor. Mas entenda que por te amar, é que me é tão difícil aceitar que você nem sempre estará aqui. Eu que todo esse tempo amei tão incondicionalmente as tuas imensuráveis qualidades, ainda preciso aprender a amar teus defeitos. Eu que te amo, tenho que aprender a te amar de verdade, como você é e não como eu desejaria que fosse. Eu que te amo, tenho que decidir se vale mais a pena passar por cima de tudo em você que me maltrata, ou passar por cima de nós dois. Eu só espero que para isso, eu não tenha que passar por cima de mim, porque não vou. Não posso. Não posso porque o meu amor por ti já está tão entranhado que faz, literalmente, parte de mim. Anular-me, seria anular um pedaço desse amor. E o objetivo maior de tudo isso é conservar nosso amor inteiro. Não sei quanto tempo levará a metamorfose, ou se algum dia conseguirei completá-la. O que sei é que hoje te amo não como uma cega que pensa que você nunca, de forma inata ou propositalmente me magoaria. Te amo como quem não exige de ti perfeições, apenas quer que você esteja aqui.
OBS: A ILUSTRAÇÃO USADA NA CAPA É DE DUY HUYNH
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Escrevo-te silêncios
Non-Fictionsobre tudo aquilo que eu queria, mas não posso ou consigo te falar.