CONTO DISPERSO - VERDE E AMARELO

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Ele viu Fight Club, e começou a me chamar de Jack. Ou é apenas um fã de System, e tem respeito por mim - Senhor Jack.

"Somos necessários, Jack." Diz, às dez da noite, enquanto revia alguns episódios do Du, Dudu e Edu. Deprimido e cansado, pensando no amanhã, quando voltar para a fábrica.

É um gênio criativo, mas algo o engoliu, e perdeu a sensibilidade para as coisas. Mesmo assim me criou, Jack, um Zé Ninguém. Penso que talvez seja uma última brasa de criatividade. Não que esse sentido possa ser perdido, ou "desaprendido", estamos falando do abandono dela.

Eu sou o cão latindo numa manhã de quarta, o relógio tocando na reunião importante e chata. Senhor Jack, nada e tudo.

Ele se levantou da cama, às seis da manhã. Lavou-se e foi tomar café. Me xingou por alguns minutos, por fazer sua mente ficar uma confusão, pensar em tudo ao mesmo tempo é desgastante, sempre é.

Ele chegou ao seu departamento, um setor extremamente caótico, testar os produtos para construção, verificar sua qualidade, e aprovar para ser vendido.

Quase sempre são aprovados, aqueles que não passam são colocados na "peneira", e é feita a reutilização daquele material. Todo dia é cobrado para acelerar o processo de aprovação. Com seu jeito profissional, rebate todas as cobranças.

Eu penso o contrário, "Deixa se foder", falo, "Não vale a dor de cabeça." O pensamento preenche o vazio enquanto ele luta para reprimir esse sentimento. "Não pense que eu vou deixar você me ignorar." Estava furioso, ele me criou num ato de auto piedade, ajudar parece que não seria o suficiente.

Ele chegou em casa, com seu peito ardendo em brasas, furioso com o que eu havia feito. "EU NÃO VOU DEIXAR ISSO CRESCER DENTRO DE MIM!" Pegou uma faca. Eu conheço suas estranhas mais escuras. "Você não vai fazer isso." Sussurrei. A tensão acabou. Estava chorando, a faca havia caído no chão. Quando a pressão vem, eu sou liberto. Senhor Jack.

Eu estava injuriado com ele, o fiz demitir-se, rasguei os produtos, cuspi na cara do encarregado. "O que eu fiz?", ele disse. "Não foi você, fui eu. Sua obra, o seu coração está em chamas, a água fervente corre em suas veias." Pegou suas chaves e saiu, trancou a porta e foi em direção ao bar.

Ele estava ao cume da noite, cheirando a álcool barato e zonzo. Nós somos mestre e escravo, ele é a minha necessidade, e eu sou seu parasita favorito. Vomitou no banheiro do boteco inteiro. Tinha algo para matar dentro dele, uma ânsia que não se livrava com gorfadas.

Eu nesses momentos fico apenas de telespectador, não há muito o que eu possa fazer, apesar de eu causar aquilo indiretamente, ele precisava. O trabalho, a responsabilidade, o afeto, tudo aquilo o estava matando, e eu fico furioso com tudo misturado. Eu chuto, e ele cai.

Ele andava pelas ruas da cidade, iluminado por postes amarelados, olhava as vitrines que colecionavam objetos desejados, botas e roupas de couro, tudo aquilo que o bom consumismo pode querer - e eu também. Mas ele parou em algo que me preocupou. Uma loja de penhores onde estava estampada uma arte abstrata, um desenho feito por um qualquer.

Eu fiquei abismado com tamanha feiura, como alguém poderia criar algo assim, digo, passar tempo em frente a uma tela, e rabisca-la para criar algo. Não faz sentido, nem o esquema de cores, Azul e Amarelo não combinam. Era a primeira vez em que me sentia assim. Com medo.

Ele me criou, não tem a possibilidade de eu deixar de existir. Mas se ele me criou, ele pode acabar comigo? Não, isso está fora de cogitação, Eu sou Senhor Jack, Tudo ou Nada. Mas se eu sou Nada, então eu posso não existir mais? O que está acontecendo comigo?

Eu não sei porque, mas aquilo mexeu comigo. Amanheceu, e ele está fervoroso em frente a esse painel branco idiota. Vai se acalmando a cada pincelada, parece que está paciente, eu não tenho mais armas para combater isso.

Ele aos poucos vai decorando o painel branco, transformando o Caos, Senhor Jack, em algo belo. Ele me criou, e ele pode me recriar. Tinta amarela e azul se encontram, e atingem a harmonia. 

Senhor JackOnde histórias criam vida. Descubra agora