Xi... xi alguma coisa!

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     Depois da melancolia da tarde do domingo, a fadiga noturna daquele mesmo dia havia lhe dado uma sova durante o sono. Sonhou muito, uma dormida calma e ao mesmo tempo, por vezes, desassossegada, sonhava tanto que confundia as realidades, as vozes com o ronco, os gatos miando nas telhas com as risadas, mexeu-se quase a madrugada inteira. Apesar disso, acordou serena, numa segunda-feira calorosa. O sol escaldava o asfalto e fazia-se criar pequenas ondas hipnotizantes, criando assim um mar preto, com uma lista amarela ao meio. O relógio ainda marcava 6h da manhã!

     Gostava das segundas, eram sempre calmas e seus dias mais felizes se passaram numa segunda-feira, igual àquela, ensolarada, viva. Animada, ela caminhou até o ponto de ônibus, que ficava no meio do nada, atrás de um terreno coberto por mato e em frente a estrada, um outro terreno vazio, com loteamentos que aparentemente não seriam comprados. Onde ela parou, não havia sombra, nem lugar para se sentar, tampouco uma placa sinalizando que ali era uma parada de ônibus, mas todos sabiam que aquele lugar era onde os ônibus paravam.

     Dois rapazes aproximaram-se, apareceram do nada, ela nem notou, pois estava olhando as ondas do asfalto. Eles, sorridentes, chegaram e pararam ao lado de Patrícia, um de cada lado, deixando a garota no meio. Ela esperava por um motoboy, mas a estrada estava completamente deserta, não havia sequer um cachorro esquelético da rua correndo por ali. A presença dos rapazes, por um instante, a deixou desconfortável, eles estavam imóveis, com um sorriso exageradamente largo, quase forçado. Sua respiração começou a ficar pesada. Olhou para o lado e um deles pegou em seus cabelos, olhando-a fixamente. Seu desconforto e tensão tinham motivo, algo ruim aconteceria naquele lugar.

     Seus braços congelaram, e apenas as pernas receberam um estímulo: sair dali. Andaria a pé até a casa mais próxima, e não olharia para trás, mas suas mãos geladas sentiram um calor antes mesmo de partir: era a mão do outro rapaz que a tocou, e agora os dois a cercavam. Em desespero, Patrícia tentava fugir, mas eles seguravam seus braços, e davam tapas em seu rosto. Iriam machucá-la ali mesmo, em plena luz do dia? Sim, e agora estavam tentando arrastá-la para o terreno de trás. Ela gritava, pedia por socorro, pulava e puxava as mãos com toda a força, mas seu corpo estava gélido e não obedecia a seus comandos, sentia-se como se fosse uma bêbada dormente, incapaz de ter força. Viu surgir, ao horizonte, um ônibus velho, e ele percorria o caminho lentamente (ou ela, em pânico, teve a impressão de que tudo no ambiente estava em câmera lenta? Bom, não se sabe...). Desprendeu as mãos, chutou um dos rapazes e correu antes que o outro a alcançasse. Ao botar os pés na estrada, magicamente o ônibus já estava em sua frente, como se a cena tivesse acelerado e ele tivesse executado um salto. Sentiu nas suas pernas o vapor quente que saía debaixo do veículo. A porta já estava aberta diante de si, subiu tão apressadamente que caiu degraus e subiu de quatro; viu os rapazes sumirem quando o motorista fechou a porta. Suspirou aliviada e agradeceu a Deus por ter conseguido entrar a tempo.

     Quando se levantou, viu que todos no ônibus a olhavam penosamente, com olhares caídos. Poderia ser que tivessem visto o que iria acontecer com ela caso não conseguisse entrar, e ficaram com dó da situação dela. Uma mãe, que estava em pé, tentava acalentar uma criança, que chorava em seus braços e que estava com os olhos cheios de remela, a mãe abanava com as mãos, para espantar as moscas que tentavam pousar no rosto da criança; ao lado, um homem usando máscara estava visivelmente inquieto, tossindo e fazendo um alto chiado quando respirava. Estava sufocando, talvez, mas ninguém olhava para ele, estavam todos imóveis, encarando Patrícia. Ver a impaciência desse homem a deixava agoniada, a fazia respirar fundo sempre que ouvia os chiados que os pulmões dele fazia, e, segurando nas barras do ônibus, ele adentrou entre os passageiros e andou para frente, em busca de ar. Sumiu. No banco mais próximo, viu uma senhora pálida, escarrando num lenço encardido. De onde estava, Patrícia conseguia ver o catarro preso ao lenço e ficou enojada. Tosse, cheiro de flores misturado com ferro, passageiros esquisitos, era tudo estranho e enjoativo. O ônibus acelerou e todos que estavam em pé inclinaram-se para trás, inclusive ela. Um homem cheio de manchas roxas e pretas pelo corpo, e de rosto inchado e mau hálito, caiu sobre ela. Patrícia, vendo que o homem estava tão inchado a ponto de não conseguiu voltar ao seu lugar, gritou. Os olhos dele estavam sem brilho, desbotados, o fedor de merda que saía de sua boa (e que estava a poucos centímetros da boca dela) impregnaram em seu nariz. A garota olhou para os cantos, mas ninguém se movia, apenas observavam, uns riam de lado, outros faziam cara de choro. Ela empurrou o sujeito, e ele caiu sentado ao lado da senhora catarrenta. Patrícia olhou pela janela e já não reconhecia o lugar onde estava. Tomou um susto tão grande que esqueceu completamente o odor e o terror que aquele homem lhe passou.

     - Mas eu estou aqui há menos de cinco minutos! – Falou baixo.

     - Xi, ... Xi alguma coisa! – O cobrador, que ela não conseguia ver, gritou.

     - Que lugar é esse?! Eu não conheço, não sou dessa região! Onde estamos? – Novamente desesperou-se. Estar perdida era algo que a deixava perturbada, e o pior daquela situação era que nada fazia sentido, nem o lugar, nem o tempo de viagem, os passageiros, ou a linha do ônibus, que era completamente desconhecida, NADA! Quanto mais ela pedia para descer, mas os passageiros a olhavam e mais rápido o ônibus andava. Olhou pela janela mais uma vez e arregalou os olhos ao ver que já estava anoitecendo. Num impulso, empurrou o vidro da janela e saltou para fora. Caiu na areia do pé da estrada e viu o ônibus partir lentamente, o que era bizarro, pois o mesmo estava em alta velocidade antes dela sair.

     - Como assim? – Patrícia queria chorar, estava trêmula, confusa, perdida. Em pouco mais de 5 minutos, o tempo pulou das 6h para as 18h, e todos aqueles olhares mórbidos que recebeu dentro do ônibus estavam fixos em sua mente. Se levantou, deu leves tapas no corpo para tirar a terra de sua roupa e caminhou. Estava com muita sede. O plano seria ir até uma casa, pedir água e tentar ligar para algum conhecido. Estava na entrada da desconhecida cidade, a placa de boas-vindas estava apagada, ela só conseguiu ver um "X", não identificou o nome daquele lugar. Caminhou e encontrou uma praça, estava pouco movimentada, e no lugar dos bancos de cimento, haviam camas de ferro, idênticas às camas de alguns hospitais. Deitadas nessas camas, viu pessoas gemendo de dor, chamando por santos, cantando, chorando e em outras camas, pais tomando sorvete com seus filhos, amigos rindo, casais se beijando, era tudo confuso.

     Patrícia, desnorteada, viu uma casinha branca, com partes do reboco da faixada caídos. Caminhou até lá, subiu uma alta calçada, bateu na porta de madeira e logo viu um senhor sorridente aparecer. Pediu água.

     - Pode entrar, moça. Vamos. - Agora, o velho caminhava lentamente pelo corredor, enquanto a jovem o seguia, olhando para o teto. Ao virar para trás, não viu mais a porta, pois a entrada transformou-se em parede, e ao gritar de espanto, virou a cabeça para a frente, não viu mais o senhor. Caminhou apressadamente e percebeu que a casa estava vazia, não havia saída, todas as janelas e portas viraram um desenho na parede, o telhado era alto, não tinha como sair. Numa tentativa fracassada, Patrícia pulou, querendo alcançar as ripas.

     - Você ainda não entendeu?! – Uma voz misteriosa falou baixo. – Não importa para onde você vá...

     Patrícia gritou, seu peito começou a latejar, doer, sentia uma dor aguda a cada palpitação. Lembrou do chiado do rapaz do ônibus e sentia que estava sendo sufocada, o coração disparou e o seu grito foi ficando abafado. Os braços ficaram molengas, a cabeça dormente e palpitante, sentia que teria um ataque cardíaco ou que seu cérebro explodiria, estava enlouquecendo! Ela, vermelha, arranhava seu pescoço, fazia força para gritar e a voz não saía, tentava pular, queria alcançar o telhado, mas o corpo repentinamente passou a pesar toneladas e tudo foi ficando mudo, pesado, vazio.

Xi...Xi Alguma Coisa!Onde histórias criam vida. Descubra agora