Único

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O sol já ia alto na fazenda, Clara e Julião Júnior já tinham saído para ir a escola com o pai de carroça. Clara odiava ir a escola de carroça, ficava indignada de andar com seu salto e seu vestido justo chacoalhando pelas estradas esburacadas, mas Catarina achava que ela precisava sentir e entender, como ela em sua época, a importância das coisas simples da vida. Não que Clara fosse mimada, só achava a filha um pouco melindrosa demais, havia puxado bastante a ela, amava ler, escrever e acima de tudo, lutava a sua maneira, aos dezesseis anos pelos direitos das mulheres. Já Julião era seu completo oposto, havia puxado ao pai, amava a vida da roça e sabia tudo sobre a rotina da fazenda, da produção de queijo e laticínios, conhecia os animais como ninguém e já dava passos de que iria administrar tudo no futuro.

Depois de tomar seu café e conversar um pouco com Neca e Mimosa, resolveu ler. Fazia tempo que não mergulhava em um livro, escolheu um para se distrair, um romance de Machado de Assis.

Ao abrir o livro, já gasto pelo tempo, observou um envelope em sua primeira página. Ficou curiosa e leu o remetente e o destinatário:

De: Catarina Batista

Para: Catarina Batista.

Seus olhos se esbugalharam e ela começou a tremer levemente, reconheceu a letra, era dela.

Lembrou-se vagamente daquela carta, havia lido uma reportagem de um jornal, uma mulher tinha escrito uma carta a si mesma para só ler no futuro, era tudo o que lembrava.

Estava com o envelope em mãos, sua passagem para voltar ao passado, não tinha controle nenhum do que estava escrito ali, não se lembrava do conteúdo. Mas resolveu encarar, afinal era só um papel.

Rasgou o envelope pegou uma folha amarelada pelo tempo.

“São Paulo, 1927

Olá Catarina do futuro, tudo bem com você? Espero que meu plano tenha dado certo e que tenha escolhido um livro para reler no futuro, ficaria muito frustrada se tivesse morrido e não encontrasse essa carta, ou pior, tivesse a descoberto no momento errado.

Bom, deve estar se sentindo perdida, então irei explicar o que está acontecendo. Li uma reportagem no jornal de uma mulher que havia presenciado uma experiência diferente que, segundo ela, mudou sua visão de vida. Quando jovem, escreveu uma carta a si mesma relatando seus pensamentos na época, sua vida e sua visão de como estaria no futuro. Guardou a carta num álbum de fotografia e só a reencontrou vinte anos depois. Decidi fazer o mesmo.

Primeiro te situarei do que está acontecendo. Sim, como deve imaginar, estou expulsando todos os pretendentes que insistem em vir me cortejar. Tudo porque papai continua com a ideia fixa de me casar antes de Bianca. Toda essa bobagem de tradição machista que faço questão de findar. Bianca continua uma besta apaixonada por Heitor e vive me ameaçando com greves de fome para que eu noive, não acredita com quem: Petruchio...

Parou sua leitura da carta momentaneamente e ouviu a carroça do marido chegar. Observou-o da janela do quarto. Ele continuava igual, só que um pouco mais velho, os anos lhe trouxeram algumas rugas e cabelos grisalhos, mas sua pele continuava morena pela queimadura do sol e seus trejeitos, bom, ela podia lê-lo só de observá-lo descer da carroça. No momento achou-o preocupado, seus ombros estavam rígidos e bufou ao mesmo tempo que tirou o chapéu e passou a mão no topo de sua cabeça. Algo o preocupava.

Sorriu lembrando-se da carta, a Catarina de quase vinte anos atrás não sabia que decoraria todos os jeitos do Petruchio que ela supôs ser insignificante na época em que a galanteava.

...Talvez você não se lembre dele, foram tantos que nos cortejavam. Um dos últimos foi aquele vigarista do jornalista Serafim. Uma coisa que posso falar de Petruchio é que ele não é interesseiro igual a ele. Espere, nunca imaginei que falaria algo bom de Petruchio, ainda mais por carta, agora já está escrito e não vou rasgar e escrever outra. Provavelmente sequer se lembrará dele, então está tudo bem...

Uma espiadinha no futuroOnde histórias criam vida. Descubra agora