O Cão Falante de Doca Alferes

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          O vigário mandou dizer ao alferes que ele estava excomungado da Santa Igreja.

          Ordenou-lhes que o levassem o cão urgentemente, que antes do sacrifício teria o direito de ser julgado como homem, já que também falava.

          O alferes era Doca. O cão era eu.

. . .

          "Misericórdia": cidade e súplica, 1908, dias da peste – e a seca braba comendo as coisas pela beira como se fosse sarna. O processo não havia sido sequer enviado à Roma, mas o pecado do alferes era evidente demais, e assim sendo, a sua pena era tácita; anátema! Ele fora acusado de magia negra, de feitiçaria, de possuir em casa um cramunhão preso numa garrafa, e que por conseguinte, o diabinho teria dado a mim o dom da fala! A cidade é pequena, e apesar do lugar ser sempre um apanhado de vidas modorrentas, a notícia se espalhou rápido como a raiva no mês de agosto; teria começado lá na rua do ferreiro, se espalhado pelos casebres mais distantes dos sítios até chegar aqui no centro. Eu conto isso, enquanto lambo as minhas feridas, debaixo de uma velha carroça quebrada e emborcada, largada nos arredores da praça...

          A difusora no campanário da igreja então noticiou outra morte, e não fazia mais do que quatro horas do sepultamento de Pajé da Gama, outro pobre do arraial de mestiços levado pela febre. Eu mesmo havia varado o dito cortejo fúnebre enquanto fugia de meus algozes; e me lembro bem de que foi uma mistura doida de "Ave Maria" com "Volta Aqui, Cachorro da Moléstia".

           O homem de cartola alta benzeu-se logo após ter escutado o aviso ruidoso e mórbido das cornetas na torre, depois voltou seu olhar para baixo, tirou o cigarro de palha da boca, e continuou dizendo à multidão reunida na praça: – Que Deus o tenha. Velho tropeiro de Jacobina; foi um bom cristão também... – pigarreou, depois prosseguiu – Raul. O cachorro se chama Raul! Onde já se viu isso? O Dono se chama Doca, o vira-lata, Raul. O homem é que tem nome de cachorro e o cachorro é que tem nome de homem. No mínimo suspeitoso, vocês não acham, povo de Misericórdia? – Era Mixaria, estava elevado sobre um banco e apoiava-se no tronco de um marmeleiro; de Nogaret soprando suas considerações nos ouvidos de Felipe IV acerca de de Molay.

          Os misericordienses não eram misericordiosos: estavam lá, de foices e enxadas em riste – só não haviam tochas porque ainda era dia, e fazia muito calor no sertão. Todos raivosos, quase que espumando pela boca – não sabia que isso dava de igual modo em gente humana. Estavam debaixo da sombra alongada da paróquia do Perpétuo Socorro, ouvindo o discurso acalorado daquele sofista com pedigree; discurso esse que grudava nos quengos alheios feito carrapato. Mixaria era o autoproclamado presidente do Comitê de Salvação Pública de Misericórdia, coisa que só ele sabia, e se orgulhava por isso; possuía a língua mais ardilosa e proselitista que a do próprio Robespierre, tão afiada quanto a lâmina de sua guilhotina em prontidão. Pois bem, eles estavam lá, todos prontos para apanhar o girondino, o cátaro herético e pernicioso, e a mim também, o seu cão endemoniado falastrão!

          – Ele lê São Cipriano, há quem o visse ler! – alguém gritou no meu do povo.

          – Perceberam que a rasga-mortalha agora pia todas as noites? – disse então outro.

          – Ouvi uma conversa de que o homem mandou trazer uma carranca talhada de mais de dois metros de altura lá das bandas do São Francisco... É a imagem do próprio Belzebu! – Este último complementou.

          Mais estupefação; as foices e enxadas roçavam entre si no ar.

          O povo estava convencido de que Doca e eu erámos o motivo de tão mau agouro; fora lançada sorte, e ela recaiu evidentemente sobre nós: éramos, portanto, naquele mar tempestuoso, o azarado Jonas dentro do navio a caminho de Társis.

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