Celina
Enquanto Godofredo fechava os olhos, Celina se convencia mais uma vez de que o que ela estava fazendo não era errado, errado era o que os filhos dele tinham feito com ele.
Celina cansava de ver seus filhos os abandonarem no asilo, darem tchau e nunca mais aparecerem. Pior mesmo eram aqueles que apareciam uma vez ou outra, mas era claro que nunca os amaram. Então, enquanto colocava os idosos para dormir, ela tinha certeza de que o que estava fazendo era para o bem deles.
Diversas vezes já tinha escutado a história de alguma enfermeira em algum outro asilo que tinha matado idosos com algum tipo de veneno injetado em suas veias e de como eles foram pegos e a justiça os tinha feito pagar por acharem que podiam decidir quando a vida dos outros poderia acabar. Suas colegas de trabalho julgavam, mas elas também tinham listas de quem escolheriam caso tivessem o poder da vida e da morte. A maioria não escolheria os idosos e, sim, seus filhos.
Celina era uma dessas enfermeiras com síndrome de megalomania, mas de uma coisa ela tinha certeza. Ninguém nunca descobriria o que ela estava fazendo, simplesmente porque para descobrir o que ela fazia com os pobres velhinhos, a pessoa teria que ter um conhecimento avançado sobre física quântica.
Os filhos do senhor Godofredo o tinham deixado ali quando ele tinha apenas 67 anos. Na época, Godofredo era agressivo e estava demonstrando seus primeiros sintomas de alzheimer. Conforme seu tempo foi passando ali, a doença foi ficando cada vez pior e ele tinha chego num ponto em que ele não lembrava seu próprio nome. No começo, seu filho aparecia para ver como ele estava indo, mas depois de um tempo, as visitas foram diminuindo, até ficarem praticamente inexistentes. Celina tinha dó do Godofredo, não por causa de seu filho que o abandonou, mas por ter esquecido da pessoa que costumava ser.
Ela não o conheceu antes da doença, mas, às vezes, quando ele dormia, Celina observava seus sonhos e conseguia ver o homem que ele costumava ser. Seu Godofredo tinha sido militar mas ele não gostava do que fazia, queria ser cozinheiro. Ele adorava fazer bolos, mas nunca o fez pois temia seus pais, e embora eles tivessem morrido quando ele era ainda novo, o medo ainda ficou enraizado em sua mente.
Celina escolhia essas pessoas, não porque queria se livrar delas, mas porque acreditava que ao fazer o que fazia, as libertariam do sofrimento maior que era viver dentro de um corpo que não os pertenciam. Celina já tinha visto o outro lado, então, ela sabia que lá, eles poderiam finalmente ser eles mesmos sem a restrição de um corpo deficiente.
— Seu Godofredo morreu. — Disse uma colega sua de trabalho com lágrimas nos olhos. Simone se apegava muito a eles, via neles seu próprio avô.
— Sério? — Celina disse, fingindo estar triste. Ela colocou uma mão no peito. — Meu Deus, que dó. Morreu como?
— Morreu enquanto dormia. — Simone respondeu já começando a chorar. Celina a abraçou, a permitindo chorar em seu ombro.
— Ô, Moni... — A chamou pelo apelido carinhoso. — Não fica assim. Pelo menos ele não sofreu.
— Mas já é o terceiro esse ano. — Uma outra colega disse e Celina a amaldiçoou mentalmente. — Será que não tem alguma coisa acontecendo?
— Acho que não. — Simone disse. — São os mais velhinhos que estão partindo.
Lourdes ficou em silêncio, imaginando consigo mesma se ela precisava prestar atenção melhor aos seus pacientes. Celina não disse nada, apenas ficou em silêncio confortando Simone, enquanto anotava mentalmente que Lourdes deveria ficar quieta. Ela deveria fazer alguma coisa quanto à ela, mas não agora. Não aqui. Quando ela estiver em casa.
Celina não tinha muito o que fazer em casa mesmo, principalmente agora que todas as suas filhas tinham a abandonado. Ela empatizava com eles por causa disso, porque, sabia que se tivesse idade, Mary a teria enfiado num asilo também. Fazia anos que não conversava com Mary, a única que tinha restado.
Enquanto Celina tentava acalmar Simone, o telefone tocou e Lourdes atendeu. Seus olhos se arregalaram, assustada. Passou o telefone para Celina.
— É para você. É a polícia.
Celina pegou o telefone levemente tremendo, imaginando se eles tinham descoberto, mas certa de que não era isso.
— Alô, eu falo com Celina de Souza?
— Sim.
— Estamos ligando para lhe informar que encontramos sua filha desaparecida. Adeline de Souza.
Taí uma ligação que Celina achou que nunca receberia.
***
Celina dirigiu feito doida, se enfiando entre carros, passando sinais vermelhos e escutando buzinadas de motoristas bravos. Ela tinha um motivo para estar apressada. Ela precisava encontrar sua filha no hospital, entender o que tinha acontecido com ela. Precisava ver Adeline.
Entrou no hospital, estacionou porcamente e correu para a recepção.
— Eu sou Celina. Me chamaram a respeito da Adeline. — Se apresentou, colocando as mãos no balcão, respirando fundo, ofegante.
A enfermeira pediu para ela aguardar um instante e foi chamar o médico. Ela pediu para que se sentasse, mas Celina não conseguia sentar. Ela andava de um lado para o outro, preocupada com sua filha. Preocupada com o estado que ela poderia estar, preocupada se ela tinha falado alguma coisa para os médicos. Porque se Adeline tivesse aberto a boca, Celina poderia estar em um problema ainda maior com a polícia.
— Celina? Você é a mãe da Adeline?
— Sim. Como que ela está?
O doutor Matheus respirou fundo, sem saber como começar. Ele coçou o pescoço.
— Fisicamente, ela está bem. Está perfeitamente saudável e estava perguntando de você.
Celina respirou fundo e percebeu só então o quanto que ela estava tensa. Era isso que ela precisava escutar. De que Adeline estava bem.
— Posso entrar?
— Eu precisava conversar com você antes disso. — Ele disse e Celina gesticulou para que ele continuasse. Estava com pressa. — Fisicamente, ela está bem. Porém, pode ser que você se surpreenda ao entrar no quarto.
— Porque?
— Ela não envelheceu. — Disse e não recebeu nenhuma reação de Celina. Esperava receber mais que um outro gesto de mãos para que ele continuasse. — Ela ainda aparenta ter 12 anos, e, pelo que parece, ela não se lembra de nada do que aconteceu com ela.
— Sim. — Celina disse e quis interromper ele. É claro que ela não vai se lembrar de nada depois de ter ficado oito anos presa em uma árvore. Mas esperou pacientemente até ele continuar.
— Pode ser que ela apresente alguns outros problemas de memória. E nesses casos, nós temos que ser pacientes e esperar que a memória dela se recupere sozinha. Pode ser que demore.
— Posso ver minha filha agora?
Ele abaixou a cabeça diante da resistência de Celina, e deu um passo para o lado, permitindo a entrada dela no quarto.
Celina entrou correndo no quarto, querendo abraçá-la.
— Ah, meu Deus, minha menina!
Mas no momento em que entrou, Adeline se assustou e se recuou para um canto. A enfermeira estava ao seu lado e foi atrás dela que se escondeu.
— Line... O que foi? Não quer um abraço de sua mãe? — Celina perguntou nos pés da cama.
— Você não é a minha mãe.
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Francine
FantasyFrancine é uma jovem dedicada, sonha em ser desenhista de histórias em quadrinhos algum dia e está trabalhando muito para conseguir o que quer. Até que um dia, ela acaba trocando de corpo com sua colega de quarto, Vanessa, que está grávida de 8 mese...