Nas Águas Escuras

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Por Carlos Eduardo Angelim 

Ilustração por Gealyson José Soares


    Espero por todas as forças que ainda me restam que os eventos do último outono não sejam jamais esquecidos. Mas também me pergunto, meu Deus, se a ignorância a respeito desses fatos não seja na verdade uma benção. Enquanto me encontro aqui, mergulhado em desespero e incerteza, a chuva impiedosa cai lá fora, incessante. Ainda é dia, mas sinto um pavor crescente e incontrolável em mim. Tenho horror do som hediondo das gotas de água caindo sobre o chão seco, as quais me lembram a grandeza opressiva do mar e dos oceanos que esconde segredos e atrocidades que talvez devessem permanecer escondidos para sempre.

    E tudo isso começou naquele maldito outono. As folhas secas caíam das árvores e se amontoavam sobre as velhas estradas de terra que percorriam todo o vilarejo. O esplendor laranja das folhas não era o suficiente para ofuscar os dias frios e cinzentos daquela época que serviam de inspiração para velhos escritores, como eu e meu amigo de longa data Stephen Charles, com o qual pude conceber grandes obras ao longo de uma carreira de grande sucesso no meio literário.

    Mas os incontáveis anos de ofício não puderam preparar a mim e nem a Stephen aos acontecimentos que estavam por vir. Passamos um dia inteiro a discutir sobre os rumos de nossa nova obra, intitulada "O Conto de Ludwig", que narrava a vida de um jovem que partia pelos mares em busca de terras ainda desconhecidas. A discussão fora interrompida abruptamente por um grito desesperado que vinha do vilarejo. Assustados, partimos em direção ao som angustiante, na esperança de que houvesse ainda algo a ser salvo.

    Muitos haviam tomado a mesma atitude, em vão. Tudo que havia restado de quem quer que estivesse ali se resumia a uma poça grotesca e indescritível de ossos, carne e sangue. Tal visão seria suficiente para enlouquecer homens de mente fraca. Ao perceber a inutilidade de suas ações, todos retornaram à suas casas. Permaneci no local junto a Stephen na esperança de encontrar qualquer coisa que pudesse ser esclarecedora.

    Entre os restos mortais daquele pobre coitado achamos apenas uma velha placa de pedra, que lembrava um livro. Possuía algumas runas encrustadas em sua superfície, mas nada que fosse familiar a qualquer língua que eu ou Stephen pudesse reconhecer naquele instante, mesmo que Stephen fosse um especialista nos antigos idiomas deste mundo. Por mais estranho que pudesse parecer, senti algo de maligno naquelas gravuras. Algo profundamente maligno. Sugeri a Stephen que guardássemos e estudássemos a placa em segredo, sem jamais mencionar sua existência a quem quer que fosse. Despedimo-nos e retornamos à nossas casas, assim como os outros antes de nós. No dia seguinte, meu Deus, quem limparia os restos mortais daquele homem morto, se é que aquilo um dia fora um homem?

 No dia seguinte, meu Deus, quem limparia os restos mortais daquele homem morto, se é que aquilo um dia fora um homem?

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    Durante a noite fui atormentado por estranhos pesadelos. Neles pude ver a presença opressiva dos mares e dos oceanos e pude ver que algo se contorcia sob as águas. Acordei na manhã seguinte, assustado. Saí de casa, mesmo com o frio que fazia do lado de fora. Para a minha surpresa, o corpo havia sido removido. Por quem, eu imagino? Agora, havia muitas respostas a serem respondidas. Dirigi-me à parte mais baixa do vilarejo, onde os pescadores ficavam próximos ao mar. Pude ver, com meus próprios e verdadeiros olhos, a fonte de todos os meus medos e incertezas.

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