Só mais uma viagem "tranquila"

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Era tarde, por volta de duas horas, o ônibus da Real Maia que realizava uma viagem de Belém com destino à Teresina estava a todo vapor pela estrada. O horizonte de floresta na esquerda e direita era assustador mesmo de dia. A natureza deserta das árvores e das propriedades em toda sua extensão passava uma insegurança enorme  uma vez que estar naquele veículo era a única forma de sair daquela imensidão vazia. 
Do lado de dentro, o ônibus era como qualquer outro em que se paga caro para ter o mínimo de conforto durante aquelas horas de estadia.  Era grande, espaçoso, com umas vinte cadeiras de cada lado sem contar com as duas do final que eram de altura acentuada e era mais fácil de se locomover e ajeitar a poltrona para tranformá-la em um pseudocama. Depois de um tempo as batatas doíam mas até que era alguma coisa. 
Os passageiros eram uma mescla de caça-palavras, de cobertas no rosto e outros jogando em seus celulares tentando conversar. Este último era limitado pela internet, que devido ao deserto de árvores, era quase impossível de arranjar sinal. 
Eu olhava tudo aquilo sabendo que teria uma longa observação ainda pela frente. Eram no mínimo dezesseis horas de viagem se tudo ocorresse bem e já estava ficando cansativo assistir desenhos e focar nas particulares humanas em seus costumes isolados era uma tarefa que, bem, não era lá meu maior gosto. 
Como tudo nesse mundo parece que é uma grande coincidência, em meio a todo aquele silencioso ônibus, meu amigo que estava ao lado estava concentrado em seu terço fazendo seu momento de fé. Decidi prosseguir olhando o deserto verde que se apresentava ao meu lado, na janela. Mesmo tedioso pelo "mais do mesmo" a cada metro passado pelo ônibus, era legal se desligar de tudo por um instante. 
Aproveitei para escutar Tempo Ruim no meu celular, música essa sugestiva para uma viagem. Acredito que foi nessa mesma ideia de finalidade que o Matanza que a fez. 
De tanto pensar e ir longe com minhas próprias ideias eu acabei cochilando, por quanto tempo eu não sei dizer, só lembro que me espantei com o Ney do meu lado dizendo para eu acordar. O ônibus estava parado, ainda era dia, mas ficaria assim por muito tempo.  Todos os passageiros estavam dessa vez muito atentos ao que se sucederia dali em diante. A preocupação de ficarem todos isolados em um lugar hostil, desconhecido e sem sinal de comunicação preocupava. Mas ainda sem pensar nisso, só consegui perguntar. 
– O que aconteceu? Ainda não faltava muito até chegar?!
Alguns passageiros ainda conversavam para passar o tempo. Um deles era Ney, com seu cabelo encaracolado, de tom bronzeado, seus óculos quadrados e sempre com um sorriso muito cativante ressaltado naquelas bochechas enormes, até mesmo em momentos complicados. Engraçado que ele é bem menor do que eu e quando entramos no ônibus no começo da viagem, o confundiram com uma criança. Me  acompanhava ao destino até Teresina e, naquele momento, estava a tratar algumas questões com alguém ao lado. Mesmo assim ele parou um momento para me responder.
– O ônibus deu prego, eles estão vendo o que deu de verdade. 
O tom de fala era o normal que eu estava habituado, nem tão alto e ao mesmo tempo preocupante.  Ele falava com uma mulher que devia ter uns trinta anos no máximo. Seu cabelo era castanho escuro, liso e tinha um sorriso bonito. Usava aparelho dentário em cores verde e rosa bem vivos. Era obviamente maior que o Ney, cena engraçada já que ela aparentemente estava dando em cima dele enquanto ele nem sequer fazia esforço para perceber. 
– Ah, o gatinho acordou finalmente. Prazer em conhecê-lo, me chamo Carolina mas pode usar o famoso Carol que já estou acostumada. – acordar e do nada já ter uma desconhecida se apresentando a mim era uma mescla total de sonho e realidade. 
– Meu nome é Lucas, muito prazer. – assenti e cutuquei Ney. 
Os passageiros estavam trocando ideias, alguns fora do ônibus. Alguma coisa envolvendo a correia do veículo. Preocupava a ideia de não ter algo funcional para as polias naquele momento e ali, parados na estrada com uma gigantesca quantidade de nada seja à frente ou atrás ou nos horizontes em nossas laterais mantinha nossa mente muito presa à ideia de que teríamos problemas maiores que somente uma dúvida de qual biscoito puxar da mochila e comer. 
– Qual é o problema aqui com essa caranga? – estava realmente ficando com medo. 
– Eles estão resolvendo, tenta se acalmar. Pega o violão e vamos animar isso aqui. 
Foi a melhor ideia que Ney poderia ter dado. Quase não lembrava em meio aquilo tudo do meu Tagima ali na capa só esperando para eu tirar dele algum tipo de melodia. Em minha ansiedade de pegar o violão ouvi Carol rindo de nossa tentativa de animar o ambiente e ela com aquele vestido e batom vermelho não estava ajudando na concentração. 
– Agora fiquei curiosa, quero ver os dois cantando. – ela falava e no fim de suas falas sempre saía um sorrisinho sacana no final, como se sempre houvesse algum plano maligno ou má intenção. Ou talvez eu só estivesse alimentando mais uma de minhas paranoias. 
Quando finalmente o violão estava em mãos e uma canção do Engenheiros do Hawaii na iminência de sair, alguns passageiros entraram no ônibus. A música foi adiada por alguns segundos porque um deles queria ouvir também.
– Ah, teremos um show. Esperem aí que eu vou gravar. – fiquei com vergonha e receio. 
– Eu não quero cantar mais. – brincou Ney.
– Vamos, o tempo passa melhor assim. 

O Vilarejo InexistenteOnde histórias criam vida. Descubra agora