Alma

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Desde que eu me lembro de algo, quase todas as pessoas que conviveram ao meu redor se encolheram de medo enquanto eu passava. Todo dia era um desafio diferente, porque eu acordava, otimista, com fé de que as coisas poderiam ser melhores, e recebia apenas bocas abertas e olhares suplicantes como se implorassem pela minha compaixão.

Nunca entendi o que queriam dizer com isso.

Alguns imploravam, dizendo "não, não, não, por favor!" e outros nem me viam chegar perto até que fosse tarde demais. Não tenha medo, eu me aproximava para dizer, e num piscar de olhos via a expressão da pessoa mudar drasticamente enquanto caía no chão por algum motivo qualquer. Ser eu mesma sempre foi um ato solitário.

Eu não sabia o que tinha de errado comigo, e não tinha ninguém disposto a me explicar. Tudo que eu tocava, mudava de forma, e então se tornava outra coisa, e eu ouvia os cochichos constantes na rua de todos aqueles que me queriam fora de sua vida para sempre. Eles rezavam e rezavam, implorando aos seus deuses para que eu desaparecesse deste mundo, mas eu me lembro vagamente de quando tudo começou e eu recebi uma missão que na época ainda não compreendia bem.

- Você fará o ciclo girar e será aquilo que permite que o momento tenha importância - disse a luz, enquanto explodia galáxias e sussurrava feitiços de crescimento em tudo que criava de si.

Quando nasci, não sabia do fardo que teria que carregar. Já tive muitos nomes, mas nenhum que conseguisse me conter por inteira, que me permitisse ser tudo aquilo que sinto que poderia. Até que um dia, conheci uma pessoa que já no intervalo de um olhar, revolucionou a forma como eu olho para mim mesma.

Caminhando pela floresta, assustando até os animais que não conseguem entender porque me temem, avistei de longe uma moça linda como as estrelas dançantes do céu. Me escondi atrás de uma árvore porque não queria que ela me visse e se assustasse com a feiura que eu imaginava ter. Eu não sabia qual era a minha aparência, mas fantasiava sobre os meus horrores e deformidades que provavelmente eram a única parte visível de mim.

Ela tinha o cabelo vermelho até a cintura, que parecia se encher de chamas enquanto o Sol o iluminava. Com a sua túnica branca de seda, ela colhia cogumelos silvestres enquanto alimentava a vida da floresta com a sua beleza. Eu pensei que estava sendo discreta, enquanto a contemplava a uns vinte metros de distância, mas em um dado momento, pisei em um galho e deixei a minha posição escapar com o ruído que se fez. Ela se virou em minha direção com a graciosidade de um cervo, e então disse, com a voz tão suave e melodiosa quanto uma sereia:

- Eu sei que você está aí, apareça!

Mesmo com medo do que ela pensaria de mim, não quis ignorar o seu pedido. Algo me atraía em sua direção, como uma força magnética quase impossível de ignorar. Me questionei se ela mudaria como os outros, se eu a tocasse. Eu não queria que nada nela mudasse, era perfeita, como uma fotografia de instante a ser guardada para sempre. Me esgueirei timidamente para a frente da árvore, sem caminhar em sua direção.

O que aconteceu a seguir não poderia ter me chocado mais, porque, enquanto eu esperava o pavor se fazer presente nos seus olhos, não encontrei nenhum traço de medo, apenas um brilho tão puro quanto a face da Lua. Ela largou sua cesta no chão, e veio caminhando lentamente até mim, com o olhar fixo nos meus olhos. Eu queria olhar para baixo, com vergonha de encarar o seu rosto luminoso, mas não conseguia desviar o olhar. Parando a mais ou menos um de mim, ela disse:

- Como você é linda.

- Eu? - perguntei, confusa, nunca tendo ouvido nada parecido antes.

-  Sim... a mais linda que já vi - ela falou, com um tom certeiro na voz que não dava espaço para hesitação.

Alma (Conto Filosófico)Onde histórias criam vida. Descubra agora