A menina não sabia o que fazer com tantos sentimentos enroscados dentro de si, eles se chocavam contra a pele dela, precisavam sair. Diga o que sente Entretanto, ela era incapaz de dizer, as palavras ficavam presas ali, entre a garganta e o mundo, saiam emboladas quando tentava encaixá-las uma após a outra, traduzi-las. Todo o resto era fácil, discursar nos debates da escola, tagarelar sobre seu dia quando os pais a perguntavam. Chegava a atropelar as palavras, mas não importava, porque existiam palavras a serem ditas. Ela vivia as coisas e depois as repetia para a mãe, a aula de hoje, a prova de amanhã, os brinquedos do parquinho. Traduzir o que podia ver e ouvir era simples, contudo, traduzir uma língua que você não fala é difícil e Eloá parecia não ser fluente nas próprias emoções
Em defesa da menina, tudo o que sentia era muito bagunçado: animação, amor, raiva, medo. Eles brigavam uns com os outros por um espaço dentro do peito e só paravam quando a garotinha ouvia a música. A música serena que vinha do outro lado da rua, rompendo contra as paredes de uma casa antiga. Assim as emoções dela podiam coexistir e ela conseguia entender cada uma. Por isso Eloá aproveitava às vezes desavisadas nas quais a melodia aparecia e observava atentamente a Casa de Música, em busca de qualquer sinal de movimentação.
— O que tem de tão interessante naquela casa? — perguntou a mãe, enquanto estendia roupa em um varal ali perto.
— É estranha — Eloá respondeu.
A mãe riu.
— Todas as casas antigas são estranhas e esse bairro é cheio delas.
A mãe não estava errada e a menina sabia, mas não podia dar um explicação melhor. Ouvir costumava ser fácil de traduzir, todavia, a garota não sabia partituras, não sabia quais eram as notas que estava escutando. Simplesmente podia apreciá-las, indo de um lado para o outro em um balanço no quintal, a melodia que vinha de dentro da casa a embalava.
Contudo, ela não era de mentir, a casa era realmente estranha, formada de tijolos alaranjados e cercada por portões de aço altos. As janelas de vidro não ajudavam muito, estavam cobertas por um papel marrom. Mesmo assim a garota encarava a casa o tempo todo, em partes porque parecia inevitável e também por uma das poucas sensações que podia nomear: esperança.
Um dia alguém lá de dentro tiraria o papel marrom e revelaria seus instrumentos e seus talentos hipnóticos. E a menina poderia perguntar como fazer aquilo, pois ouvir era bom, mas não era suficiente .
A menina se envolvia no ritmo por quanto tempo durasse, o que geralmente não era muito. A música começou a diminuir, desvencilhando-se dela e voltando a ser guardada em algum canto daquela casa vizinha. Alguém tinha que aparecer e arrancar o papel marrom, alguém iria aparecer. Inclinou-se no balanço, apoiando as pontas dos pés no chão, o coração pulsando rápido. Eloá ouviu um barulho, uma nota rangida, agarrou-se a corrente do brinquedo. O rangido ficou mais alto, um dos barulhos que você ouve quando mexe em madeira velha: tinham empurrado a porta por dentro, mas a Casa de Música estava sempre trancada. A porta bateu contra a corrente da fechadura e voltou para trás. E se o músico estivesse preso?
— Você viu, mãe?
Mas a mãe já estava longe, tinha deixado o jardim. Só a garota havia visto aquilo, ela não sabia bem o que era, talvez um pedido de ajuda ou talvez o músico quisesse mostrar que estava realmente ali, que a menina não imaginava as músicas assim como seus pais costumavam dizer. Eloá só saberia se desse um jeito de descobrir por conta própria.
Estava naquela hora quando a tarde e a noite se chocavam, luz do sol não brilhava tão forte, tão pouco as estrelas chegavam a piscar, e as ruas ficavam cobertas por uma luz amarelada vinda dos postes na calçada. As luzes iluminavam um grupo de crianças brigando de pique-bandeira no asfalto, um pouco adiante da Casa de Música. Não estava de noite e a rua não estava vazia, não sentiria medo. Olhou para trás mais um vez, a mãe não estava à vista .
Eloá desceu do balanço e saiu do quintal. Atravessou para o outro lado da rua, testou puxar o primeiro portão da casa estranha, ele abriu com um barulho intenso de quem clamava por óleo. A garota mordeu os lábios e ficou parada por alguns instantes, as mãos suando. Instintivamente esperou por um grito, a mãe a impedindo de continuar, mas tudo que ouviu foi a música voltando a tocar, subindo e ficando muito aguda, o coração da menina, acompanhou querendo saltar para fora do peito. E tudo nela ficou mais elevado, mais agudo, Eloá sentia que estava na ponta dos pés, emoções bagunçadas puxando-a para cima. E para dentro, para dentro da casa, ela obedeceu. A porta da frente estava trancada, as janelas tampadas, tentou se aproximar delas, ver se o papel marrom não era tão grosso quanto parecia de longe. Não teve sorte, não conseguiu ver nada.
Mas as notas estavam a provocando. Seguiu pela lateral da casa e chegou a parte de trás. A música estava mais nítida, sem barreiras. O vidro da janela traseira estava quebrado. A garota se aproximou, apoiou as mãos no batente e olhou para dentro da casa.
Lá uma luz dourada capitou sua atenção, uma bailarina cor de ouro dançava em uma caixinha disposta sobre uma mesa, havia duas outras mini bailarinas paradas. Só a da ponta esquerda rodava, a música esganiçada escapando pelos ares. A menina sentia a raiva crescendo como se subisse uma montanha russa e as notas fossem ficando mais altas, os ouvidos dela cheios com a batida do próprio coração.
A caixa deveria ter um botão. Eloá arriscou, passou devagar pela janela estilhaçada e pulou para dentro da casa.
Não era como havia imaginado, colorida e alegre, isso era apenas o que a música mais calma transmitia. Na verdade, a residência era o que aparentava ser, uma casa esquisita e abandonada, cheia de poeira e com poucos móveis desgastados. Mas a música parecia um portal para um universo paralelo e a garota queria o universo equilibrando, nem na subida e nem na descida da montanha russa.
Foi até a mesa e pegou a caixa, tinha mesmo um botão. Ela apertou e a música cessou, todas as bailarinas ficaram estáticas. Apertou de novo, a do centro começou a rodar e um som mais grave soou. Eloá fechou os olhos, seus sentimentos saiam do corpo e voltavam batendo fortes, como um eco. Fez a batida parar mais um vez. Só faltava ouvir uma bailarina, tentou. E deu certo, era aquele som sereno que a fazia flutuar mesmo fora do balanço.
A menina começou a dançar junto com a bailarina, giravam para lá e para cá, as notas rodopiando ao redor das duas. A energia saía de Eloá, das mãos que erguia para o alto, libertando uma parte de si mesma que se prendia a música, unindo as duas como um só. As emoções e a melodia, tudo brando e calmo.
Viva, estranhamente viva. Mais viva do que jamais esteve. E agora a vida estava nela e se espalhava por tudo que tocava.
A porta da frente abriu de repente. A luz amarelada da rua entrou ali, o músico podia se libertar. A garota pegou a caixinha e levou consigo para casa.
Agora ela tinha controle, mais do que conseguir explicar, conseguia sentir.

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A Casa de Música
Short StoryEloá precisa da música tanto quanto a música precisa dela. Vale a pena atravessar o desconhecido por isso?