Negação

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- Papai! Papai! - Meu sono fora interrompido. A voz infantil ressoava no cômodo. Abri os olhos, a claridade era ofuscante. Piscando os olhos poucas vezes pude ver a silhueta de minha pequena, um sorriso curvou meus lábios; sabia bem que dia era hoje. - Sabe que eu tenho que ir né? A escola pediu para morar lá enquanto o senhor melhora... - ela pareceu tristonha, mas fiz questão de manter meu sorriso preguiçoso. Não consegui falar, mas a vi ir embora silenciosamente; a ressaca e a dor de cabeça excruciante forçaram-me a dormir por mais tempo enquanto o barulho da carroça contínuo começava a ficar mais longe.

Os grilos cantavam altos em minha cabana, levantei desnorteado da cama. A roupa fedia a suor e minha testa estava encharcada. Devo ter sonhado novamente. Um suspiro pesado saiu de meus lábios finos e feridos. Da cômoda desgastada e mofada ao lado da cama retirei o frasco de plástico alaranjado e transparente. Ali continham mais ou menos 5 comprimidos. Fechei os olhos desejando que a visão não fosse real. Balancei o frasco, medi seu peso na minha palma, porém tudo constava como deveria ser: meus últimos comprimidos gratuitos. Abri a tampa branca, que fez um barulhinho engraçado; um barulhinho que sempre gostei. Que eu e ela gostávamos. Demorei a tomar a pílula branca e maciça. Sem água, engoli a seco e senti-a pela garganta. Com pouca coragem levantei da cama e dei alguns passos, sem memórias das últimas semanas acaba sendo difícil saber o que fazer. Andei até o quarto de minha filha: vazio. Seus risos costumavam encher aquelas paredes, hoje tem poucas bonecas de pano. Minha destra se esticou até a primeira prateleira e retirou de lá Mango, o macaco bacana. Apertei os lábios e respirei fundo. Ele ainda cheirava a grama e erva doce. Sem pensar duas vezes o abracei. As lágrimas quentes desciam pelo meu rosto enquanto os ombros mexiam, reagindo aos soluços que ficavam mais altos, os olhos se fecharam me recusava a acreditar que ela estava longe a essa altura. Ainda lembrava como se fosse ontem do nosso último natal; da ceia que não pôde ser completada.

O violino ressoava pela sala em harmonia com o piano, Jude e Lara sabiam tocar muito bem. As risadas eram altas e as luzes pisca-pisca alternavam entre verde e vermelho. Natal. A época que mais gosto. A lareira queimava uma pilha de madeira recém cortada e a neve caía lá fora forte e feroz; o vento fazia a porta ranger em protesto e as janelas tremerem com o frio. Mango tinha cheiro de banana. Estava com ele no colo enquanto a pequena aventureira corria pela sala com os primos menores e de mesma idade. Ela tinha 6 anos, estava tão bonita com os lacinhos brancos e o vestido que a coloquei. Minha esposa chamou-me, ao olhar para a porta da cozinha não vi ninguém. Ao baixar os orbes vi a poça de sangue se formando, o meu ouvido apitou e os gritos começaram. Depois disso não lembro de mais nada além de acordar na cama de uma curandeira e da dor infernal em minha mão esquerda.

Pisquei algumas vezes, o ar saíra falho de minhas narinas entupidas, solucei mais algumas vezes antes de me acalmar. Olhei para a pelúcia entre minhas mãos, decidi leva-lo. Ao andar pelo minúsculo corredor vi a minha mochila desgastada e rasgada. Enfiei o macaco manchado ali e voltei ao quarto pegando meu frasco de remédios e uma muda de roupas usadas e ainda não tão manchadas. Assim que considerei tudo em ordem, coloquei a mochila nas costas empurrei a abertura. A tábua de madeira que eu chamava de porta moveu-se para fora. Os ares chuvosos e frívolos indicavam mais um inverno pesado. Meus passos foram pela terra, úmida e escorregadia. O cheiro de mato ainda estava presente assim com o barulho de animais pequenos correndo pela mata alta. Seguia o fatídico caminho de barro, o qual foi formado pelos vários veículos que já passaram por aqui em direção ao povoado mais acessível e próximo; porém era injusto ter de ir para minha casa na cidade se eles ganhavam os serviços de graça. Vai saber...

De cabeça baixa mal notei a pequena movimentação em um arbusto, parei e fiquei olhando por um tempinho me perguntando o que movia tanto as folhas. Impaciente, caminhei até uma árvore e peguei dois gravetos de mais ou menos 10 centímetros. Joguei um na moita e esperei. Nada. Decidi pegar ele de volta e continuar minha caminhada, tinha medo de sair dali algum bicho. Odeio insetos, sabe? Borboletas, abelhas; não sustento a presença deles perto e hoje não foi diferente. Em meu silêncio vi a movimentação de asas marrons em minha direção, ela uma borboleta daquelas feias quem tem olhos. Odeio essas, me sinto vigiado demais. Tomei coragem, aquele inseto "pacífico" encontrou minhas mãos enluvadas. Fechei seu corpo entre minhas palmas com força e me pus a esfregar entre as luvas de lã tingida rasgadas nas pontas dos dedos. Assim que me dei por satisfeito não fiz questão de ver o pequeno cadáver, apenas tirei as luvas inúteis e joguei junto ao inseto, agora morto.

O tempo se passava muito devagar ou eu estava rápido demais, apenas agora pude ver a lua despontar no céu. Ergui o rosto para conseguir contemplar melhor junto as estrelas. Não tinha relógio, mas acho ser umas 17:30 ou 18 horas julgando pela pouca movimentação. Não pude aproveitar meus poucos segundos de sobriedade e questionamento, vi a luz de uma lamparina ao longe; o galopar dos cavalos acompanhavam fazendo um barulho oco na terra, algo estranho que notei foram as risadas. Altas demais, muito esganiçadas para mim. Meus passos foram para o canto da estradinha, quis ao menos dar passagem para quem quer que fosse. Os dois jovens riam, bêbados, tinham uma espécie de corda nas mãos. A luz fraca não me deixava ver. Aos poucos as galopadas foram parando e eu ouvi os gritos ao mesmo tempo: - ó a cobra! - Parecia um pesadelo, porém eu senti o momento em que as serpentes se enrolaram em mim, nas roupas, podia até mesmo ouvir sibilar dos animais; o "rrrrr" característico e assustador. Gritei a plenos pulmões, minha garganta doeu com a altura. Meus pés se moviam sozinhos na mata enquanto sentia os animais em mim. Minhas mãos desesperadas tentavam tirar aquelas coisas, aquelas malditas serpentes. Quanto mais passava as mãos mais sentia elas e quanto mais sentia, mais agonia experimentava. Continuei correndo mata a dentro, a aflição não me deixou enxergar o que tinha a frente. O chão pareceu terminar, o silêncio se instalou por um segundo. Abri os olhos para ter a visão da cidade iluminada e da lua que era ofuscada pelo brilho de prédios e postes. Tudo parecia etéreo, onírico. Mas minhas costas encontraram a terra dura, e minha cabeça também. Apaguei no mesmo instante, com cobra ou sem cobra, apenas senti o gelado me envolver naquele instante. Suspirei pela última vez, o breu acolhedor me engoliu.

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⏰ Última atualização: Jul 07, 2021 ⏰

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