O SALTO

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Nesse momento algumas pessoas acabam fazendo sempre algo que lhes conforta.Tendem a esquecer daquilo que está por vir. Os homens nunca enfrentam o que estádiante deles. Medo da verdade, da realidade. Estado de fuga. Eu particularmente nãosei bem como reagir. Não pense que estou com medo. Apenas não sei mais para ondefugir. Para onde me refugiar. Deixei a foto de minha esposa e filha em terra. Maisdistante do que os incontáveis metros de altura, é a distância de uma escolha por estáaqui. Escolha ou dever? Já não faz mais diferença. O comandante se levanta. O pisoda aeronave é instável. Parece que as nuvens não nos querem aqui. Nós, os homens,também levantamos, como se fossem máquinas. Talvez seja resultado da impaciência.Eu poderia repetir as palavras do meu superior, falar o que ele falou, mas sendosincero, na hora até pode ter feito a diferença, agora... Não passam de umamontoados de letras.A porta do avião abre. Todos ajustamos as máscaras e regulamos as mochilas. Vai serum grande salto. Consigo ver o horizonte curvo.Não consigo dizer quantas vezes eu saltei na vida. O número oficial é de dois milquatrocentos e setenta e sete. Mas eu sempre contei todos eles, cada um que eu dei.Seja os saltos que eu dava no sofá para atingir as almofadas do chão de casa. Quetinham o cheiro de minha mãe. Lavanda e capim fresco. Ou quando eu comecei afazer parte da equipe de salto já no ensino fundamental. Foi lá que eu conheci o amorde minha vida. E também foi lá que eu cheguei a conclusão que a distância dotrampolim para a superfície nítida da água não era mais o bastante. Pouco tempodepois, decidi me alistar na aeronáutica. A primeira vez que vi o sol acima dasnuvens, eu sabia que era aquilo que eu queria. Chegava a esquecer até de minhamulher e filha. Parecia que eu sempre fiz parte daquilo. Não da paisagem comoobservador. Mas sim, fazia parte daquele ar. Eu era invisível junto a ele. Só quemsentiria, o que eu senti seriam meus iguais, meus irmãos de salto. Eu fazia parte deuma experiência, de um todo. Mas, agora...Agora não faço ideia do que faço parte.Diante de mim parecia que o sol não era mais o sol. E sim, apenas um holofote. Nãopassava de uma fonte de luz. Aquelas luzes que os fotógrafos posicionam para tiraralguma foto sua em estúdio. Uma lâmpada que não faz qualquer diferença para mim.Acho que para nenhum de nós.Estamos em fila. E o homem ao meu lado acaba de aguardar uma daquelas edições doNovo Testamento. Capa azul, papel fino, onde se diz para não vender aquele exemplar.Não escuto o comando do comandante. Mas não era mais preciso, estamos na piordas harmonias: o medo.Saltamos.O ar não nos envolve, ele é atrito puro. A natureza, saberíamos alguns meses antes,estava contra nós. Destruímos tudo, consumimos o que nos bem entendia. Jogamostudo ao mar e ao vento. Plástico, dejetos. O pior de nós. É justo que eles não nosqueiram mais. Me sinto como o câncer que levou minha mãe. Minha Gaia se foi hámuito tempo. Já está, em que vivemos, luta por sobrevivência, luta para destruir suacriação, seus filhos.Penso em algo, mas não quero expor. Tento focar no salto. E não no que está láembaixo.As nuvens estão cada vez mais perto. São turvas, quase de um roxo fúnebre. Elas semovimentam como ondas do mar. Redemoinhos, braços gigantes de traços esguiosem púrpura. Os raios jogam luzes que nos fazem ver o que não está lá. Mas atenuamais ainda a angústia no peito.Desde crianças somos ensinados que nuvem são macias como algodão doce. Quandopegamos pela primeira vez uma turbulência em um avião, sentimos medo pelossolavancos. E aí temos ideia de que elas não são macias, e sim, quase maciças,naquelas circunstâncias, tememos o belo e o que achávamos ser inocente.Nesse exato momento, o que nos envolve é o mistério. É o puro horror. Além de aindanão vermos o nosso destino, não conseguimos enxergar nossos iguais, nossas mãos,são apenas certezas de uma ideia, de um conhecimento prévio e psíquico de sentidosque nos dizem que elas ainda estão lá. Não fosse por isso, poderíamos passar pordefuntos. Estaríamos do outro lado, do que quer ele seja.É finalmente que entramos em uma zona oca no corpo da nuvem. Seria como estarem um crânio. Só existe o oco. Onde a luz do sol não chega perene e o ar é tomadopor inúmeros pingos de chuva.Estamos agora dentro da tempestade.Acionamos a fumaça. O vermelho não colore. Ele apenas risca. É isso que somos,riscos em uma cenário austero. Daí em diante é começar o que treinamos. A fumaçavermelha, indicaria que temos liberdade de nos juntar aos grupos. O treinamento nabase foi o último ato social que todos nós fizemos. Já que no avião nenhuma palavrafoi dita. A base, assim como o próprio nome, remete à terra, ao chão. Chão. Palavraque carrega consigo uma onomatopéia. Seu som, seu chão. Nosso corpo. E sendonosso, e podendo ser a última vez que o tocamos, fizemos por fazer e para nosdespedir. Hábitos que alimentam o corpo. Comemos, transamos, tocamos o que nosfaz tocar. Eu, talvez por infelicidade, não via como uma despedida, e sim como um atode dizer para o outro de que iria voltar. Espero que ela tenha entendido isso. Pensoagora, se foi uma decisão certa. Será que joguei uma falsa esperança?Essa seria a hora final. Estamos perto do último ato. Deveríamos ver as formas daenorme metrópole. Suas luzes fixas e móveis, sua respiração que pulsa fuligem,aromas e temperaturas. Mas não existem mais pulmões nesse corpo. O corpo éapenas uma carcaça da sociedade de concreto e aço. E é nessa hora, de achar queestamos diante do vazio, que o acaso nos faz lembrar do porquê estamos ali.Um raio corta o céu que está agora em cima de nós. A luz estridente e veloz não nosassusta. Porque já fomos atingidos pelo terror que ele contornou. O terror do nãoraciocinado que está lá. Não interprete o lá como a cidade, aquilo já deixou de ser.Deixou de ser racional e passou para o não nomeado. Não nomeado por falta derespostas. Talvez para uma criança, o monstro à nossa frente, seria apenas mais umboneco em sua caixa de brinquedos. Para nós, era uma aberração.O cenário que passamos, por mais severo que tenha sido. Eu e muitos outros,conseguimos imaginar e nomear. Agora, não mais. Acionamos os paraquedas, vemosos corpos vazios dos prédios. São ruínas, catacumbas cheias e vazias de matériamorta. E é nesse momento, em que vejo o corpo da criatura, que eu me vem opensamento no qual eu havia me censurado antes. Penso e questiono diante o horror,da fera: Deveríamos mesmo sobreviver?

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⏰ Last updated: Jul 22, 2021 ⏰

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