Capítulo único

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Hange estava sentada atrás da larga escrivaninha que era parte da mobília do cômodo designado para o comandante da Tropa de Exploração, o quarto que um dia pertenceu a Erwin.

A luz do sol iluminava o escritório através de três grandes janelas, uma delas disposta na retaguarda, de forma que as costas da cientista logo ficaram aquecidas apesar das frias paredes de pedra. Às vezes, ela sentia falta da sua modesta salinha lá nos fundos do Quartel General, onde muitas vezes reuniu-se com Moblit para longas horas de pesquisa sobre titãs; aquele antigo lugar tinha um bom isolamento acústico, de maneira que a cientista podia gritar e rir sem incomodar ninguém.

Lembranças de um tempo onde as coisas já eram difíceis, no entanto mais simples do que são agora.

O novo escritório que lhe deram, muito maior e aconchegante, tem paredes de vidro. Hange sabe que tem toda a liberdade para falar o quanto e quando quisesse, mas também tem noção de que não seria adequado – ou melhor: seguro. Antigamente, ninguém tinha ouvidos para toda a sua "falação", agora, de repente, todos estavam dispostos a ouvi-la. Do contrário do que costumava pensar no passado, essa nova realidade era desconfortável.

Ela se mudou para aquela sala após a cerimônia da batalha em Shiganshina, a vitória mais difícil que já conquistara em toda a sua vida de soldado. Eles selaram a muralha Maria e obtiveram o Titã Colossal, um monstro aterrorizante capaz de destruir cidades inteiras em menos de um minuto e também uma das criaturas mais majestosas que a cientista tinha visto. Essa conquista lhes custou a vida de mais de cem soldados, incluindo a de Moblit e Erwin.

A última lembrança que ela carregava de Moblit era a face assustada sumindo gradualmente enquanto ela caia no poço para onde foi empurrada pelo rapaz. Quando o mundo se tornou quente e vermelho, ela viu um relance de alivio no olhar do amigo cujo objetivo na vida parecia ser o de tomar conta para que a cientista louca não perdesse a sua própria por acidente. Hange foi tomada pela escuridão antes mesmo de cair no poço, de onde até hoje questiona a si mesma se escapou de verdade. Ás vezes, ela pensa que uma parte de sua sanidade continua até hoje naquele buraco escuro, sem chance de ser resgatada.

Quando voltou para a superfície, não encontrou nada além de fogo. Descobriu que a escuridão de antes não foi só culpa do poço, mas também dos óculos destruídos. Uma das lentes se partiu em pedaços que se fincaram em sua pele, ocasionando uma dor latejante que ela só foi sentir mais tarde, e perda total do olho esquerdo. Ela soube que jamais encontraria o que restou do corpo de seu assistente, e nem queria. Seu dever era manter a memória da melhor imagem dele – um homem cuidadoso e cheio de vida.

A morte de Erwin foi mais difícil. Hange chegou a tempo de impedir uma tragédia, entretanto, não foi capaz de reviver o seu antecessor, uma vez que a escolha da seringa fora designada a outro soldado – Levi. A cientista estava ao lado dele enquanto a vida se esvaia em decorrência dos graves ferimentos no estômago, e foi ela quem atestou sua morte.

Hange e Levi carregaram o corpo sem vida de Erwin para uma das casas há muito tempo abandonadas e o puseram numa cama macia. Levi retirou a capa do uniforme e enrolou o rosto do comandante nela, para protege-lo das moscas e dos vermes. As asas da liberdade, emblema da Tropa de Exploração, ficaram voltadas para cima, amassadas e desfiguradas. Naquele momento, ela se permitiu um pouco de fragilidade. Hange sentou no colchão e chorou com as mãos no rosto, enquanto Levi ficou parado perto do rosto coberto do comandante. Ela sabia que Erwin e o capitão eram próximos, e que Levi precisava de um tempo sozinho com ele. Hange deu o que ele queria e foi para fora. Nenhum deles disse nada.

Na rua, Hange refletiu pela primeira de muitas vezes sobre todas as coisas que aconteceram naquelas poucas horas. Ela perdeu todo o seu esquadrão e ainda fora presenteada com o título de nova comandante da Tropa de Exploração, um exército quebrado de nove pessoas. Parecia uma piada de mal gosto. Enquanto esperava por Levi, encontrou algumas flores que, de alguma forma, sobreviveram ao caos da batalha. Hange recolheu as flores, sentindo-se um pouco consolada ao respirar o doce perfume. Quando Levi voltou, Hange entrou na casa novamente e colocou as flores num vaso horroroso que encontrou na cozinha, deixando-o no criado-mudo ao lado de Erwin. Não era uma maneira apropriada de dar adeus a um amigo, mas por ora serviria. Às vezes, ela lembrava disso e ria sozinha.

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