-Walburga

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        Quando soube que minha criança viria, surgi no espelho d'água de minha filha imortal, mãe de sua mãe, e disse que iria até ela. A Eterna sabia que seu sangue tinha se espalhado muito com o correr do tempo. Sua descendência foi parar longe, além de várias fronteiras, a ciclos inteiros de distância. Ainda assim, pude sempre sentir minhas filhas e meus filhos. Sempre saberia quando precisassem de mim.

Parti só pelas estradas sem luar, munida apenas de meu manto e meu cajado. Cheguei ao castelo de Erphesfurt na noite certa. Chovia muito, e a tempestade abafava o burburinho dentro dos muros do castelo. A comoção, bem como a forma simplória que havia tomado, me facilitou o disfarce, permitindo-me uma entrada despercebida em meio à multidão agitada de criados. De qualquer parte, no entanto, era possível seguir os gritos da Condessa até a torre principal, onde dava à luz seu primeiro rebento.

Ainda despercebida, subi as muitas escadas que levavam aos aposentos, e fui estranhamente recebida como se já estivessem a meu aguardo. Eu sabia que estavam; minutos antes ouvira alguém dizer que precisavam com urgência de uma parteira mais experiente; a Condessa já sofria há tempo e temia-se que não resistisse.

Sem perder tempo, assumi a frente do caso, com a licença da pobre menina assustada e trêmula que até então se havia ocupado daquilo. Eu podia sentir seu medo de ser enforcada caso a Condessa viesse a falecer em suas mãos. Medo este que eu não compartilhava.

Uma vez ali, eu já não temia absolutamente nada.

Salvei ambas, mãe e criança. Da mãe pouco pude ver - um pano úmido lhe cobria a fronte e os olhos. Desfaleceu tão logo ouviu o choro da cria, deixando-a, aquela criatura miúda e indefesa, completamente desamparada no mundo a não ser por mim. Eu a trouxe então para junto do peito e a embalei. Limpei o sangue de sua diminuta figura e lhe trouxe alento até que a mãe despertasse para alimentá-la. Mal havia silenciado o pranto quando ouvi a porta às minhas costas abrir e fechar, trancando-se logo depois. Uma enorme sombra se projetou sobre nós três, a voz densa se fazendo ouvir logo em seguida.

-O que é?

As palavras tombavam sobre o chão, rígidas e metálicas. Olhando por cima do ombro pude ver sua silhueta. Não respondi verbalmente, nem jamais o faria, não em sua presença. Fiz com as sobrancelhas que não havia entendido sua pergunta.

-A criança. - insistiu - É homem ou não?

Tornei os olhos para o bebê, deixando o homem sem resposta imediata. Pude sentir seu rosto se contorcer de desgosto às minhas costas.

-Fale quando eu lhe fizer uma pergunta, serviçal.

Voltei a olhar para ele, dessa vez virando-me em sua direção. Fiz com que visse a criança, encerrando qualquer dúvida quanto a seu sexo. Percebi que aquele ser desonroso e ignorante tentava usar em mim seus dons sobrenaturais, sem saber que esforço nenhum teria efeito sobre minha vontade. A fim de manter o disfarce, contudo, fingi que tentava falar e que a voz me falhava. Fiz-me de muda e ele mordeu a isca. Pude ver satisfação em seu rosto.

-Bom. Muito bom. Melhor ainda seria se fosse também ama-de-leite. Creio que se fará necessário.

Assenti. Apesar de não ser de todo verdade, eu faria com que fosse.

-Siga-me.- foi só o que disse antes de se virar e abrir uma porta oculta na parede, desaparecendo nas sombras onde desapareci logo em seu encalço, sabendo bem o calvário que nos aguardava nos próximos anos. Em meus braços, a criança se mantinha sempre bem segura. E isso bastava.

A canção das sombrasOnde histórias criam vida. Descubra agora