Capítulo único

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Seus olhos eram preciosos. Brilho celestial feito exclusivamente para me cegar, nublar a alma e enfeitiçar a mente. Você me envenenou no abrir dos teus lábios, no suspiro do seu tédio, nos piscares do seu cansaço.

Eu nunca fui louco.

Eu nunca fui, de fato, obsessivo com algo que não fosse a monótona rotina diária nunca quebrada; que não fossem os cafés mornos e a cara trincada. Foram seus olhos fulvos que entraram no meu caminho naquela manhã de sexta-feira, às nove e trinta e três, no metrô, a caminho de Lotren – sua paradinha diária para a faculdade de design.

Descobri mais tarde, em uma visitinha furtiva ao departamento de artes, que seus traços tinham mais acédia do que bramir autêntico da sua inspiração, e encontrei no canto de cada pintura a sua assinatura delicada e legível. De um estranho que nós amamos [1] a Mo Guan Shan. Adorável, estimado, querido. É, é verdade. Te amei desde o início.

Você entrou no meu caminho sem eu ter pedido. Você se fez ser visto. Você se deu a liberdade arbitrária de ser observado por mim. E que mal tem a admiração devota? A análise programada de tudo que te envolve?

Me vi num dilema. Um paradigma profundo sobre a normalidade.

Reparar nas suas unhas bem cuidadas – por conta do violão, é claro; no seu cabelo recém-cortado; nas suas olheiras cheias de lembranças; nos seus lábios comprimidos – de vontade de gritar para o mundo; na sua mochila trocada; nos seus tênis novos – daquela marca que você comentou com seu amigo no metrô, às três e meia da tarde, a caminho de casa; isso era anormalidade ou um simples delírio indelicado da minha parte?

Quando chego em casa, invado seus sonhos. Penso que te tenho sobre as minhas mãos, e então tudo se torna realidade. Seus suspiros nos meus, seus lábios nos meus dentes. Arfo cansado. Aluado, extenuado, abatido. Hipnotizado, endiabrado, enfeitiçado; maluquinho.

Não vejo a hora de dormir, para acordar amanhã cedo e te ver de novo, no mesmo assento, no mesmo metrô, no mesmo caminho. Guardei os horários com mércia: 9:30; 13:40; 15:25; 19:20.

Manhã e noite eram meus preferidos. De dia, seu semblante sereno, sua carranca não posta e sua máscara de prontidão para o mundo – sujeito bravo; um rebelde sem causa. De noite, um cansaço genuíno, que deslizava por seus ombros e caía por suas mãos, que pendiam ao lado do corpo, junto com o sacolejar dos seus braços, em um sono aparentemente maravilhoso; no bramir vívido da escuridão noturna, eu me permitia encará-lo por exatos quarenta minutos, do ponto da sua faculdade até o bairro sua casa.

Eu me via dentro dos seus elísios, arrancando suas flores e deflorando sua pele. Nosso namorico derriço era de uma façanha sem igual. De uma hora para outra naquela minha vidinha monocromática, você se tornou um ponto de luz. Uma luz vermelha e quente, que prendia os olhos.

Não demorou muito até eu acompanhá-lo ao seu apartamento. Foi com inocência que te vi tomando banho pela janelinha pequena. Na minha solidão, festejei audível a lembrança do seu corpo esguio – e que excitação animalesca abraçou meu corpo.

Você morava sozinho. Tinha hábitos descuidados, com direito a porta destrancada e janelas abertas – um calorento nato. Cogitei uma visita noturna, tendo convicção do seu sono pesado. Seria invasão de privacidade? Mas entre nossos encontros ostensivos no metrô e em sua casa, qual seria a real diferença? O que importava era a intenção e eu nunca fui um homem tão designado quanto naquele momento.

Pensei; considerei, girei, rodei, morri em pensamentos agonizantes sobre entrar no seu teto e sentir o cheiro do seu hálito avinhado enquanto dormia. E eu o fiz.

Numa quarta à noite, em que você estava dez vezes mais cansado que o comum – apresentações de faculdade são difíceis, não é Mo Guan Shan? Tudo bem, eu entendo. Já estou formado, sei bem das suas dores – veja só, não temos muito em comum!? Te olhei até o escuro começar a ficar cinza, tenho vista boa, não se preocupe. Eu não perdi um milímetro dos seus cílios compridos e do seu peito que subia e descia no compasso do seu inspirar calmo. Paraíso. Visão do empíreo. Eu estava no céu, minha felicidade estava ali, deitada a três palmos das minhas mãos indecentes.

Se tornou rotina. Toda quarta, eu e você. À noite. O som da respiração como sinfonia do nosso amor. Na nossa nona noite, me sentei ao seu lado na cama, sua pele encostou na minha mão. E digo com propriedade que foi inteiramente sua culpa o arrepio na espinha que me deu; aquele meu comportamento bestial e imprevisível foi inteiramente sua culpa, Mo Guan Shan.

Nós estávamos bem.

Eu te via todos os dias da semana, de manhã, tarde e noite; às quartas dormíamos juntos, aos sábados e domingos eu te acompanhava anonimamente pelas suas empreitadas por aí. Você nunca beijou nenhuma boca, nem encostou em nenhuma mão que não fosse a minha. Fiquei feliz pela sua lealdade. Você era ótimo. O ser mais especial do mundo. Minha prioridade na vida. O motivo para eu acordar de manhã. A teia que segurava meus demônios.

Então me diz, por quê?

Não era nosso ritual?

Toda quarta, eu e você? Nossa respiração e o sereno da madrugada?

Na vigésima noite, por que logo nela entabulou a revolta dos sentidos? Encetou o despertar da visão? Me diga, você não tinha o sono pesado? Você mentiu para mim, Mo Guan Shan? Pensei que a sinceridade fosse o lema do nosso enlaço.

Por que gritou?

Logo você, tão silencioso. Sua vontade de ladrar sua cólera impetuosa para o mundo nunca rompeu as barreiras do seu coração, então por que gritou naquela noite quando me viu?

Nós tínhamos uma conexão especial, por que eu sou o estranho aqui? Você se permitiu entrar no meu vício. Por que; por que; por que; por que; por quê?

Suadeira; minhas mãos estão quentes, o estofado desse colchão está afundado demais, acho que vamos nos afogar; seu pescoço é liso e fino. Esvaecido e pálido, como premeditei. Apertado, que dor me dá. Choro muito. O ar foge do quarto. A terra parou de circular oxigênio. Estou sem chão e você azul.

Paralisado nesse chão duro que parece escorrer melancolia, quero motivos, mas acho que nunca terei respostas. A sensibilidade do meu corpo já não existe mais, te olho pela última vez e parece a primeira – se tirássemos os olhos arregalados e os lábios esbranquiçados.

Te amei do início até o último triz.


Notas Finais

[1] filme dirigido por Cappola, 2017. Temática incrível, mas um finalzinho mixuruca que me dói lembrar.

Vocês estão vendo essa capa fantástica? Sim, é o Wonderful Designs fazendo milagres. Leithold é a designer incrível que fez essa arte para mim. Eu estou muito feliz com essa lindeza <3 T.T

Essa é minha one tianshan mais recente postada no spirit, me aventurando no que amo: terror/suspense. Aliás, tenho uma two-shot tianshan de suspense planejada para o mês  que vem, vamos ver se saí a tempo.

Obrigadinha por terem lido até aqui, espero que tenham gostado. Até a próxima!

Os motivos estão nos seus olhosOnde histórias criam vida. Descubra agora