Um beijo molhado e muita esperança

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Essa história foi escrita para o concurso do projeto Golden Lotus em parceria com a Moonomic Store.


O tempo era diferente ali. No mundo de onde eu viera, os dias se passavam em uma rapidez agourenta e dolorosa, o desespero dos humanos inflamando aquele reino perdido, o clamor dos famintos e o fedor dos doentes contaminando em maldição cada poro, cada semente de magia e cada sinal de esperança que um dia existira ali. Desde que eu consigo me lembrar, não há uma mísera alma livre de toda aquela dor e desgraça. Sem comida, sem água e remédios, a praga dos roogas se alastrou por cada pedaço de terra, levando caos e destruição por onde quer que passasse.

Mas na Morada dos Deuses – lugar onde eu, por ora, não havia acostumado a chamar de casa –, o ar era suave e divino, transpirando o poder daqueles seres imortais que viviam ali, enquanto os dias se arrastavam e perduravam por toda a eternidade. Tudo era coberto por uma camada densa de magia, dourada e quente e aconchegante, silenciando aos poucos a cacofonia dos gritos mudos que dominavam a minha mente.

Não sabia ao certo há quantos dias estava ali, uma vez que o conceito de tempo era completamente diferente daquele que eu estava acostumada, mas meu corpo estava cansado, cada músculo e pedaço de pele maltratado pelo treinamento de luta e espadas que eu estava sendo submetida. Ayla, minha noiva e deusa da lua e das estrelas, exigira que sua companheira fosse ensinada a se proteger, o que significava que encontraria um mestre de armas todos as manhãs para treinar.

Ayla Skyfall abriu o céu e desceu até o meu mundo amaldiçoado para me reivindicar como dela, egocêntrica e egoísta como qualquer deus. No início, eu a odiei com cada pedaço da minha alma, disposta a não deixar que ela invadisse o menor dos meus pensamentos. Mas, com cada uma das suas características excêntricas, ela me conquistou, pouco a pouco entrando em meu coração e conquistando seu espaço.

E então eu fui levada até o mundo divino para nos casarmos.

Uma parte de mim, egoísta e cruel, se sentia mais aliviada a cada prato de comida que era colocado a minha frente, sentia um peso sair de minha alma e a dor da doença se esvair de meu corpo. Enquanto a outra, menor e quase apagada em meio ao fogo desconhecido do meu individualismo, chorava em luto pelas vidas humanas que ainda eram amaldiçoadas pelos roggas.

Os roogas eram criaturas demoníacas que estiveram à espreita daquele universo por milênios, alimentando-se pouco a pouco da vida e da força motriz daqueles planetas esquecidos e ignorados pelos deuses, pequenos e inférteis demais para fazerem alguma diferença em suas vidas divinas e poderosas.

Quando nasci, meu reino já estava tomado pelas trevas e desgraças daqueles demônios.

Enquanto caminhava até o altar, dei-me conta mais uma vez que a minha vida era diferente agora, livre e segura de toda aquela maldição, fúria e dor. E eu empurrei fundo em minha alma o nojo e desprezo que sentia por mim mesma.

A sala de cerimônias era um mundo particular, a Lua e o Sol brilhando lado a lado no topo daquele imenso salão, as paredes cor de marfim repletas de pinturas gloriosas que retratavam as conquistas dos deuses, o vento agradável assobiando pelas janelas com entalhes de prata e ouro. Do chão ao teto, pilastras de mármore branco eram esculpidas com a adoração dos humanos pelos Etéreos.

E havia a música: o tambor e os instrumentos de corda tocavam suavemente a cada passo meu, a melodia flutuando pelo meu corpo. Os convidados sorriam, deuses menores e criaturas mágicas adorando sua nova rainha.

Mais afastado do salão, dezenas de soldados estavam enfileirados ao longo do caminho, espadas na mão e armaduras no peito, as asas enormes e negras elevando-se às suas costas, sérios e alertas mesmo que a mulher parada ao altar jamais precisasse de alguém para protegê-la.

Rainha dos CéusOnde histórias criam vida. Descubra agora