Todo nosso conhecimento se inicia com sentimentos.
Enquanto velejavam para a Metrópole, Cristinne revisitou algumas lembranças do Instituto.
Quando David nasceu, ele foi para as capsulas junto com todos os outros bebes que nascem. Neste dia, Cristinne, com dois anos, subiu em uma cadeira para poder ter a vista dos grandes tubos de acrílico onde ficavam os recém nascidos. A sala tinha cheiro de pele nova, de fraudas e talcos. Os adultos, sempre muitos sérios, com peles cinzentas e olhares cansados, diferiam de forma gritante daquele cenário. Dois deles passavam entre os tubos para averiguar os bebes enquanto assinalavam alguma coisa em suas pranchetas. David era o único bebe negro daquela remessa, e era exatamente aquilo que chamava a atenção da pequena Cristinne.
Ela havia escapado da ala infantil e perambulado pelos corredores do instituto até chegar ali. Entusiasmada com a ousadia, a menina apoiou suas mãos no grande vidro que a separava do corredor para a sala dos tubos e encostou sua boca nele, fazendo caretas para todos que pudessem vê-la, e quando notaram que uma criança estava ali, rapidamente saíram da sala e a capturaram.
Cristinne não tinha idade para ser punida, mas teve que dormir sem coberta e travesseiro na noite seguinte. Claramente ela não entendia o porque dormir sem esses acessórios enquanto as demais estavam muito bem aconchegadas. Um ano após o ocorrido, Cristinne notou que uma nova leva de crianças estavam surgindo na ala infantil. Dentre elas, o garoto de cabelos crespos, curtinhos, que vislumbrara naquele dia.
Todas as crianças da ala infantil são separadas por curtas grades de madeira coloridas, justamente para não terem contato físico uma com as outras. Em cada espaço havia brinquedos diversos e acessórios infantis. Uma Tv grande na parede passava um desenho em preto e branco que tomava a atenção da grande maioria. No entanto Cristinne só conseguia notar o quão diferente e bonito eram os cabelos do garoto ao lado, que por ironia do destino agora era seu vizinho.
Hora ou outra ela tirava alguns brinquedos de seu espaço e jogava no dele para que pudesse brincar, mas não preciso dizer que aquilo também não podia ser feito. Compartilhar qualquer coisa do seu espaço era proibido. E mais uma vez foi penalizada sem cobertor e travesseiro. A questão que Cristinne não sabia, ainda, era que tudo o que pensava fazer, os adultos já saberiam que faria. Ela era uma criança previsível e preocupante. E só passou a entender que suas ações eram erradas quando cresceu mais um pouco.
Aos sete anos ela saiu da ala infantil e foi para a ala de aprendizados, onde seria instruída a boas praticas junto com as outras crianças.
— Discernimento. Alguém sabe o que ela significa e o porque é tão importante? — questionou uma velha professora, de cabelos brancos, cumpridos e uma franja que tapava seus olhos. Ela possuía uma verruga no canto da boca e muitas rugas no pescoço e em todo o rosto.
— Discernir é avaliar algo com sensatez e clareza — respondeu um garoto que sentava na primeira fileira, da primeira carteira. Agora, seus cabelos afro estavam mais volumosos do que antes - Ela é importante para que a gente não cometa erros estúpidos.
— Isto mesmo, David - A professora andou pela sala mal iluminada e questionou cada um deles com palavras diferentes até chegar a Cristinne, que sentava na ultima carteira da ultima fileira.
— O que significa a palavra Limite, e porque ela é importe, garota?
— Limite é quando alguém chega a um ponto que não pode mais ultrapassar. E ela é importante para... ah... não aborrecerem os adultos? — A professora a encarava seriamente, mesmo seus olhos não estando amostra.
— O mais curioso é que você sabe a palavra, mas não faz jus a ela. E o que significa Afeto?
Todas as crianças ao redor olharam em imediato para elas.
— Afeto...? Eu não lembro desta palavra nas outras aulas, Professora — Cristinne olhou desesperadamente para os lados, e pode ver David lá da frente gesticulando a boca "Não responda" E então soube o que fazer.
— Vamos. O que significa? — insistiu.
— Desculpe mas eu não sei.
E então a professora sorriu. Mas não foi um sorriso bondoso.
— Me preocuparia se soubesse. Esta palavra causaria a sua ruína e a de todos em sua volta. Que isso fique bem claro — e virou as costas para Cristinne, caminhando em direção a lousa - Afeto é a demonstração de emoções ou sentimentos. Pode-se ter afeto por algo, uma pessoa, um objeto, uma ideia, ou um lugar. Já imaginaram? Terem afeto por alguma coisa?
— Mas professora, porque alguma criança teria afeto? Eu mesmo, nunca nem pensei em algo assim. É totalmente estranho... — respondeu uma das crianças da sala.
— Não só é estranho como também, proibido. Isso atrapalha a produtividade, emburrece e muitas das vezes os transformam em crianças inúteis. É uma falha humana. E em nosso instituto não criamos falhas. Criamos crianças competentes que vão servir seus propósitos para com os adultos. Foi graças a essa e outras palavras proibidas que trouxeram ruína para a superfície.
— Professora. Quantas palavras proibidas existem? — questionou uma garota levantando a mão.
— Muitas. Mas vocês não precisam saber da existência delas, já que nunca as usarão.
— E o que tem na superfície? — questionou outra das cabeças curiosas.
— Ruínas. E chega de perguntas.
David sabia o significado da palavra Afeto, tanto quanto Cristinne. No instituto, David era uma das crianças mais inteligentes. Ele tinha essa predisposição desde que nascera. Cristinne compartilhava seus brinquedos com ele, mas ele não compartilhava o seus com ela, pois na primeira vez em que o pequeno garoto foi punido pelo ato de compartilhar, nunca mais repetiu. Isto é considerado natural. Você comete um erro pela primeira vez para não comete-lo mais na segunda.
A palavra afeto foi descoberta por David na própria biblioteca do instituto, em um livro específico, de difícil acesso, cuja o titulo já dizia tudo "As palavras Proibidas". Ele tinha certas regalias por tirar notas altas nas aulas. Enquanto Cristinne, jamais teria acesso a livros como aquele. E então, ele pode ver que o sentimento que Cristinne estava criando com ele ao longo desses anos, era nada mais do que Afeto. Ele decorou o texto explicativo da palavra e replicou em um papel para entrega-la.
Cristinne agora sabia que desde que nascera, já estava utilizando uma das palavras proibidas do grande livro proibido. E pela primeira vez, naquele dia, em que a professora lhe questionara sobre tal palavra, David a ajudou, aconselhando a não dizer seu significado. No fundo, o garoto de cabelos afro, também sabia que estava criando afeto com Cristinne e isto era inevitável naquela altura.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Todo Monstro que Há em Nós
Mystery / ThrillerCriadas desde pequenas no Instituto, crianças como Cristinne seguem um regime autoritário em pró dos adultos. Ao completarem 13 anos, são mandadas para lugares onde são rigorosamente exploradas, como a Grande Fábrica. Em busca de seu amigo David, de...