Capítulo Um

545 31 4
                                    

Eu sou amaldiçoado.

Não como a Bela Adormecida — isso seria um privilégio.

Eu só sabia que havia algo em mim, grande e profundo, algo que tinha espinhos e que também era impalpável. Um perigo que se sente mas que não se vê. Resolvi falar isso uma vez para meu psicólogo, mas me arrependi amargamente quando acordei da ilusão de que ele me daria às respostas para o que sinto. Não é assim que funciona, ele me disse, a terapia não vai te dar às respostas, vai apenas te mostrar como deixa-las menos difícil de serem encontradas.

Nunca deixei que ninguém se aproximasse de mim o bastante, não, pelo menos não de novo. Agora era apenas meu pai e eu, e juntos adentramos à Katharine. Uma escola nova, um lugar onde podemos "tentar de novo" de novo. Era um ciclo que parecia não ter fim, mas eu até gostava. Sabe quando pensamos em fugir e pensamentos, em primeiro lugar, tentar ser uma pessoa diferente? Alguém singular do que éramos. Isso é mentira. Não podemos ser diferentes porque já somos únicos. Aprendi isso, absorvi isso, e quando levei isso a serio, as coisas pioraram para o meu lado. A questão é, tentei ser único e consegui — mas isso não é uma coisa boa.

Meu pai adora repetir uma frase para mim quando tem chance: Cometer um erro é aceitável, cometê-lo duas vezes pode ser acidental, mas cometer o mesmo erro pela terceira vez é burrice. Ele não falava de matemática, não falava das matérias em geral, tinha um sentido maior do que eu, com quinze anos, teria interpretado. Agora, com dezessete, começo a compreender todo esse negócio de cometer o mesmo erro. Eu estava na corda bamba com meu pai, um passo em falso e nada seria melhor, por isso eu tentava cuidar da minha postura, eu tentava me equilibrar nessa corda bamba.

Adentramos a escola e todo o meu corpo funcionava no modo automático, tentava registrar tudo o que via, mas eu desinteresse era um frio até os ossos e nada importava tanto; paredes cinza, chão de cerâmica branca, quadro e um local para troféus, janelas, portas... A Katharine é gigantesca, se parece com um enorme castelo, um lugar do passado. Mas havia um computador na recepção, que ficava em uma ala separada pela qual já passamos, há câmeras demais, portas com acessos por cartões e uma sala de informática. Uma mistura dos dois lados: passado e presente. Havia coisas que me faziam perguntar qual era a história por trás, quem as fizera. Havia lido na internet que antes de ser uma escola de elite, a Katharine era uma igreja — chamada de Igreja São Paulo — e antes de ser uma igreja, um orfanato.

Então havia várias histórias, mas eram anônimas e nada me animava mais que isso.

Percebe-se que, sendo filho de um advogado, eu havia desenvolvido uma paixão inexplicável pelo caminho tortuoso dos porquês.

Tento não pensar tanto nisso, quero focar mais em como me encaixar aqui. Qualquer um pode entrar na escola — e aqui você espera que eu diga "difícil é sair dela", estou certo? —, o difícil de verdade é saber se você pode construir algo bom aqui, porque, como eu pensei, há histórias. Quais boas? Os troféus reluzentes nas prateleiras com portas de vidros sem manchas, as medalhas penduradas por ganchos prateados, o silêncio e, claro, a perfeição daquele jardim lá atrás. Quem fez aquilo está de parabéns. Mas e as ruins? Havia alguma rachadura nas paredes que eles cobriram recentemente? Alguém deu queixa de alguma coisa aqui? Alguma briga recente ou algo parecido deve ter acontecido, aqui ainda é uma escola, ainda é o ensino médio cheio de hormônios, brigas, suor e pressão. Se eu respirar fundo até consigo sentir os cheiros da adolescência e dentre eles... maconha. Vem de longe, se mistura com alvejante, comida sendo feita no refeitório à direita e perfume de flores que chega até esse corredor.

Ainda estou processando os cheiros quando paramos em frente à porta branca com uma placa azul, escrita "Diretoria". Todos os cômodos têm placas azuis assim, e tem inscrições em braile também.

Entrelinhas (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora