Capítulo 06 | Tão grande quanto distante
A lanchonete costumava ser a mais tradicional da cidade. Daquelas frequentadas por gerações e gerações, sempre atraindo grupos de jovens que queriam fugir dos "lugares do momento", em busca de um espaço e de pessoas "mais alternativas".
É aqui que nos encontrávamos para debater sobre a vã filosofia e sobre os filmes clássicos do clube de cinema. É também onde nos permitíamos discutir sobre música e compartilhar as últimas fofocas que rondavam a faculdade. Neste QG nada secreto, matávamos uma aula ou outra e sempre esticávamos as festas que acabavam cedo demais.
O lugar é grande. As cadeiras, mesas, estofados e todos utensílios, funcionais ou decorativos, parecem ter pelo menos trinta anos de idade. As poucas pessoas que ocupam apenas duas mesas em cantos opostos, desafiam seu ar de familiaridade e conforto. O vazio causa uma solidão desconhecida por aqueles assentos anos atrás. Talvez o típico não seja mais típico e, enfim, o que um dia fez história ficou para trás.
Secretamente, pensei que pudesse existir uma dose de esperança não explorada neste templo particular ainda que público. Talvez, de alguma forma, ele permaneceria imortal, intocável. Quem sabe o verdadeiro lugar da lanchonete seja mesmo em uma nostálgica caixa de memórias.
Ainda que pouco se pareça com aquele ponto de encontro um dia movimentado e cheio de vida, é difícil imaginar um lugar melhor para nosso encontro.
- Rá! – exclama Leo, de repente, alto o bastante para que sua voz ecoe pelos quatro cantos da lanchonete. - O menu continua o mesmo!
- Não me surpreende. – comento, nada ali parece ter sido renovado nas últimas décadas.
- Dá para acreditar que costumávamos vir aqui sete, oito anos atrás?! – exclamo, admirado. - O tempo voa, Ann.
Leo me chamar de "Ann" é o tipo de coisa que faz parecer como se nunca tivéssemos brigado, ou como se não estivéssemos separados há meses. Essa sua naturalidade, de alguma forma, é um carinho que sempre gostei, que sempre foi especial. Demonstrar que gosto desta pequena atenção, porém, é outra história.
Percorro os olhos pelo cardápio, que não vejo há uns cinco anos. Tanta coisa aconteceu de lá até aqui. Como será que a lanchonete estaria nos vendo? Será que de longe pareceremos os mesmos ou será que ela nem mesmo nos reconhece?
- Você chegou a ter notícias do pessoal? – pergunto, deixando o cardápio de plástico ao lado. Não consigo focar no que quero comer. Apesar da fome ser uma constante na minha vida nos últimos tempos, a tensão não me deixa decidir. – Lucas, Carol... Alguém?
- Não. Nunca mais falei com ninguém. – responde ele. Ao contrário de mim, sem retirar os olhos do cardápio. - Mas vi no Facebook que o Carlos casou e a Carol está morando fora, não me lembro onde. Deixa eu ver... Ah, a Val teve um filho há pouco tempo, estava toda felizona nas fotos!
- Ah, sim. Legal. – comento. Prometo a mim mesma que ficarei feliz pelos antigos amigos, mas só consigo me sentir ainda mais derrotada ao inevitavelmente comparar minha vida atual com a deles. - Ai, meu Deus, eu me sinto como Juno. – desabafo, enfim desviando a atenção de Leo da lista de lanches.
- Ela estudou com a gente na faculdade? – pergunta ele, confuso.
– Quem? – rebato, ainda mais confusa.
A garçonete se aproxima da mesa, interrompendo as incógnitas em nossas cabeças.
- Os pombinhos já se decidiram? – pergunta a garçonete, desanimada, ou desinteressada.
A menção de um casal me retrai. A culpa não é da garçonete que parece ter passado a noite em claro, mas a indicação de qualquer romance neste encontro me incomoda de uma maneira que nem eu mesma poderia esperar.
Mesmo sendo desligado das coisas que acontecem ao seu redor, Leo nota meu incomodo. Por algum motivo, sua reação é abrir um pequeno sorriso tímido, que não se direciona exatamente para mim ou para ela, mas emoldura uma lembrança velada.
- Eu vou querer um mega-tudo-burguer e uma Coca-Cola, por favor. – pede ele, saindo de seu transe secreto e se virando para a garçonete com uma feição satisfeita.
- O mesmo pra mim. – digo, não tão satisfeita assim.
A jovem pega os dois cardápios de nossas mãos e se retira sem muita cerimônia. Leo não faz a mínima questão de segurar seu espanto ao se virar novamente para mim. Naqueles tempos, nossos pedidos sempre opostos e eu invejava seu apetite, mas nunca conseguia chegar perto de acompanhar.
Não é necessário nenhum tipo de transmissão de pensamento para entender seu olhar interrogativo. Seus olhos castanhos esverdeados tão extremamente claros em alguns dias como o de hoje, me lembram um lago cristalino intocado e paradisíaco, onde eu já tanto vi segurança e tranquilidade.
- Comendo por dois, consigo te acompanhar, querido. – justifico.
Ele apenas ri.
- Quem você perguntou se estudou com a gente na faculdade? – pergunto, para não perder o foco e a intenção do encontro e retomar o início de conversa confuso antes da interrupção da garçonete.
– Juno. – responde ele.
- O que? Não! – exclamo, finalmente entendendo a situação. - Eu estava me referindo à personagem Juno, do filme "Juno"! Que, inclusive, pelo que me lembro, assistimos juntos.
- Não, acho que não. – diz ele, ainda sem entender muito bem do que estou falando.
- Você deve ter dormido no cinema, para variar. – concluo.
- Então o filme devia ser chato. – conclui ele, por sua vez, dando de ombros.
Com a falta de paciência que me atinge sempre que Leo faz este gesto desleixado, o encaro com a sobrancelha levantada, em olhar fulminante. Da mesma forma que antes. É assim que nossas discussões costumavam se encerrar. Uma desistência de um lado, um pavio queimado do outro e fim. Sem ressentimentos, reações extrapoladas ou conflitos duradouros e fatais. Ou, pelo menos, era assim até aquela última briga. Até aquela saída com o eco da porta batendo atrás de mim, meu rosto molhado e a chave do carro no contato.
As sensações do nosso primeiro dia juntos se misturam com a do último. É como se estivéssemos estado aqui ontem, sentados lado a lado, colados, conectados, neste mesmo banco. Já os ruídos de discussão vêm com um ruído que confunde minha cabeça. O barulho! Quero expulsar todos os sons da minha mente, me esquecer daquele dia pra sempre. Mas a cada momento que me distraio, seja onde for, eles voltam.
- O que aconteceu? – pergunta ele, mais atencioso do que curioso.
- Você me irrita. – prefiro responder, vestindo a carcaça que ainda me resta.
- Não. O que aconteceu com a Juno? – insiste ele, paciente.
- Ela estava no Ensino Médio e ficou grávida. Não tinha condições de criar a criança, então deu o filho para adoção. Para uma mulher realmente preparada, louca para ser mãe e que daria uma vida decente que qualquer criança merece. Daí, no final, a Juno vive feliz para sempre com seu namoradinho do colégio, aparentemente. – conto, com mais indiferença do que a história merece, apenas porque me importo demais para contar de outro jeito.
- Spoiler! – brinca ele. - Bem, isto está fora de questão, de qualquer maneira. – conclui, provavelmente ainda sem se lembrar do filme, mas demonstrando estar familiarizado o suficiente com a trama.
- Viver feliz para sempre com o namorado? Também acho. – continuo a fugir.
- A outra parte... – explica ele.
|
VOCÊ ESTÁ LENDO
Um amor para toda vida e nada mais [COMPLETO]
RomansNo momento mais desesperado de sua vida, Anna descobre que tudo depende de uma segunda chance. Aos 28 anos de idade, Anna acredita que sua vida já está completamente fora de controle, seja culpa do retorno de Saturno, outro motivo cósmico, cármico o...