prologo

7 0 0
                                    

Antes mesmo de entrar no chalé, Gary sabe que o caso é ruim.Sabe pelo cheiro doce enjoativo que escapa pela porta aberta; pelo zumbidodas moscas no corredor abafado e quente, e, se aquilo já não fosse indíciosuficiente de que havia algo errado na casa, errado do pior modo possível, osilêncio confirmava.Há um Fiat branco no acesso para carros, uma bicicleta apoiada na porta dafrente e galochas jogadas logo na entrada. Uma casa de família. E mesmoquando uma casa de família está vazia, ela guarda um eco de vida. Ela nãodeveria ficar lá parada com um ar pesado e agourento e sob um silênciosufocante como acontece com essa casa.Mesmo assim, ele grita de novo.— Ei! Tem alguém em casa?Cheryl ergue a mão e bate rapidamente na porta aberta. Estava fechadaquando eles chegaram, mas não trancada. Outra confirmação de que algumacoisa não estava certa. Arnhill pode ser apenas um vilarejo, mas ainda assim aspessoas trancam a porta.— Polícia! — ela grita.Nada. Nem um passo leve, um rangido, um sussurro. Gary suspira, sentindoum forte pressentimento de que não deveria entrar. Não é só o cheiro rançoso damorte. Há algo mais. Algo primitivo que parece induzi-lo a dar meia-volta e irembora.— Sargento? — Cheryl ergue os olhos para ele, uma sobrancelha finalevantada com ar questionador.Ele olha para a companheira de pouco mais de um metro e sessenta e menosde cinquenta quilos. Com quase um metro e noventa e perto dos cento e trintaquilos, Gary é o urso Balu perto do delicado Bambi que Cheryl representa. Naaparência, pelo menos. Em termos de personalidade, basta dizer que Gary choracom filmes da Disney.Ele faz um gesto breve e sombrio com a cabeça e os dois entram.O cheiro forte e dominante de deterioração humana é repulsivo. Gary engoleem seco e tenta respirar pela boca, desejando com todas as forças que outrapessoa — qualquer outra pessoa — tivesse atendido aquela ligação. Cheryl fazcara de nojo e cobre o nariz com a mão.Chalés pequenos como aquele costumam seguir uma disposição padronizada.Corredor estreito. Escada à esquerda. Sala de estar à direita e cozinha minúsculanos fundos. Gary vai em direção à sala. Abre a porta.Ele já viu cadáveres antes. Um menino vítima de um atropelamento cujomotorista fugiu. Um adolescente esmagado por um trator. Estavam horríveis,sim, nem é preciso dizer. Mas desta vez... Isto é ruim, pensa de novo. Muitoruim.— Merda — sussurra Cheryl.Gary não teria encontrado maneira melhor para se expressar. Tudo étransmitido naquele único palavrão. Merda.Uma mulher está caída em um sofá de couro puído no meio da sala, de frentepara uma enorme televisão de tela plana. A tela tem uma rachadura que lembrauma teia de aranha, em torno da qual dezenas de moscas varejeiras gordasrastejam preguiçosamente.Outras zumbem ao redor da mulher. Ao redor do cadáver, Gary se corrige.Aquilo não é mais uma pessoa. É apenas um cadáver. Apenas mais um caso. Serecomponha.Apesar do inchaço da putrefação, dá para dizer que ela devia ser magra e terpele clara, agora mosqueada e marmorizada, com veias esverdeadas. Está bemvestida. Camisa xadrez, jeans justo e botas de couro. É difícil calcular a idade,ainda mais porque grande parte do topo da cabeça não existe. Bem, não éexatamente como se não existisse. Gary consegue ver pedaços dele grudados naparede, na estante e nas almofadas.Não há muita dúvida sobre quem puxou o gatilho. A espingarda ainda está nocolo da mulher, os dedos inchados a segurando. Em um instante, Gary avalia aprovável sequência de acontecimentos: arma na boca, puxa o gatilho, a bala saium pouco para a esquerda, que é onde se vê o maior estrago (o que faz sentido,já que a arma está na mão direita).Gary é um sargento da polícia, quase não se envolve em perícias, mas afrequência com que assiste a CSI lhe parece o suficiente.A decomposição provavelmente aconteceu bem depressa. Faz calor no chalé;é quase sufocante, na verdade. Fazia vinte e cinco graus do lado de fora, asjanelas estão fechadas e, mesmo com a cortina cerrada, a temperatura noambiente devia estar beirando os trinta e poucos. Gary já está sentindo o suordescer pelas costas, umedecer as axilas. Cheryl, que nunca perde a calma, estásecando a testa e parece desconfortável.— Merda. Que bagunça — ela diz, com uma voz desanimada que ele nãocostuma ouvir.Ela balança a cabeça enquanto observa o corpo no sofá, depois percorre comos olhos o resto da sala, os lábios crispados e o rosto sombrio. Gary sabe o queela está pensando. Chalé confortável. Carro bom. Roupas elegantes. Mas nuncase sabe. Nunca se sabe de verdade o que acontece lá dentro.Além do sofá de couro, os únicos móveis são uma estante de carvalho pesada,uma mesinha de centro e a televisão. Ele olha de novo para o aparelho, seperguntando sobre a rachadura na tela e sobre o motivo pelo qual as moscasparecem se mover com tanto interesse por toda a sua extensão. Então dá algunspassos à frente, sentindo o vidro quebrado se estilhaçando sob os pés, e seinclina.De perto, ele percebe o motivo. O vidro trincado está coberto de sangueescuro coagulado. Mais sangue escorreu pela tela até o chão e ele percebe quepor pouco não pisou em uma poça pegajosa que se espalhou pelo assoalho.Cheryl se aproxima.— O que é isso? Sangue?Ele pensa na bicicleta. Nas galochas. No silêncio.— Precisamos verificar o resto da casa — diz.Ela olha para o colega com expressão preocupada e assente.A escada é íngreme, barulhenta, e mais vestígios de sangue escuro seespalham pelos degraus. No alto, um patamar estreito leva a dois quartos e umbanheiro minúsculo. Embora pareça impossível, o calor naquele andar consegueser mais intenso, e o cheiro, ainda mais repugnante. Gary faz um gesto paraCheryl verificar o banheiro. Por um momento, ele acha que ela vai argumentar.É óbvio que o cheiro vem de um dos quartos, mas, pela primeira vez, ela o deixabancar o oficial superior e atravessa com cautela o patamar.Gary observa a porta do primeiro quarto, um gosto metálico amargo na boca,e então a abre devagar.É um quarto de mulher. Simples, limpo e vazio. Guarda-roupa em um canto,cômoda ao lado da janela, cama grande coberta com um edredom cremeimpecável. Na mesa de cabeceira, um abajur e uma foto solitária em um portaretratos simples de madeira. Ele se aproxima e a examina: um menino de dez ouonze anos, pequeno e magro, com um sorriso grande e cabelo loiro bagunçado.Ah, Deus, ele se pega rezando. Por favor, Deus, não.Com o coração ainda mais apertado, volta para o corredor e encontra Cherylcom semblante pálido e tenso.— O banheiro está vazio — ela diz, e ele sabe que ambos pensam o mesmo.Resta apenas um quarto. Apenas uma porta a ser aberta para a granderevelação. Irritado, ele afasta uma mosca com a mão e teria respirado fundo se ocheiro já não o estivesse sufocando. Em vez disso, segura a maçaneta da porta ea abre.Cheryl é durona e não costuma fica nauseada, mas ele percebe que ela senteânsia de vômito. Sente o próprio estômago embrulhar, porém consegue controlaro enjoo.Quando pensou que o caso era ruim, ele estava enganado. Tratava-se, naverdade, de um maldito pesadelo.O menino está deitado na cama, vestido com uma camiseta grande demais,shorts folgados e meias esportivas brancas. O elástico delas deixa uma marca emsuas pernas inchadas.Meias muito brancas, Gary não consegue deixar de reparar. Um branco quequase cega. Um branco puro. Como o de um anúncio de detergente. Ou talvez sópareçam tão brancas porque tudo o mais está vermelho. Vermelho-escuro. Quemancha a camiseta enorme e se espalha pelos travesseiros e lençóis. E ondedeveria estar o rosto do menino há apenas uma grande confusão de vermelho efeições indiscerníveis, em meio a corpos pretos apressados de moscas e besouroscaminhando sobre a carne apodrecida.A tela rachada da televisão e a poça de sangue no chão voltam à sua mente, ede repente ele visualiza a cena. A cabeça do garoto esmagada contra a TVrepetidamente, depois golpeada no chão até ficar irreconhecível, até ele não termais rosto.E talvez fosse esse o objetivo, ele pensa, quando ergue os olhos para outrodetalhe vermelho. Um vermelho mais óbvio. Um vermelho que é impossível nãoperceber.Letras grandes rabiscadas na parede acima do corpo do menino:NÃO É MEU FILHONunca volte. É o que todos sempre dizem. As coisas vão ter mudado. Elas nãovão estar mais do jeito que você lembra. Deixe o passado no passado. Mas éclaro que é mais fácil dizer do que fazer. O passado tem o hábito de se repetirnas pessoas. Como um curry ruim.Não quero voltar. Não quero mesmo. Há muitas coisas mais importantes naminha lista de desejos, como ser comido vivo por ratos, ou dançar músicacountry. Isso é para dar uma ideia da minha vontade de nunca mais voltar a ver amerda do lugar onde eu cresci. Às vezes, no entanto, não há outra escolha senãoa errada.É por isso que estou dirigindo por uma estrada sinuosa que atravessa o interiorde North Nottinghamshire antes mesmo das sete da manhã. Há muito tempo nãovejo essa estrada. Pensando bem, há muito tempo não vejo o dia a essa hora damanhã.A estrada está tranquila. Apenas dois carros me ultrapassam, um buzinando(sem dúvida, o motorista quer indicar que o estou impedindo de avançar à laLewis Hamilton rumo a um trabalho de merda ao qual ele precisa muito chegaralguns minutos mais cedo). Para ser justo com ele, eu de fato dirijo devagar.Nariz grudado no para-brisa, mãos agarradas ao volante, as juntas brancas esalientes: devagar.Não gosto de dirigir. Tento evitar sempre que possível. Vou a pé, de ônibus oude trem para viagens mais longas. Infelizmente, Arnhill não está em nenhumadas principais rotas de ônibus, e a estação de trem mais próxima fica a quasevinte quilômetros. Dirigir é a única opção viável. Como eu disse, às vezes não háescolha.Sinalizo e saio da estrada principal para pegar uma série de vias rurais aindamais estreitas e traiçoeiras. Campos de vegetação túrgida marrom e sujaespalham-se dos dois lados, porcos fungam junto a casebres de chapasenferrujadas, entre pés tombados de bétula branca. A floresta de Sherwood, ou oque resta dela. Os únicos lugares onde talvez seja possível encontrar Robin Hoode João Pequeno por aqui nos dias de hoje são nos letreiros mal desenhados debares decadentes. Os homens que os frequentam em geral parecem muitoalegres, e as únicas coisas que roubarão de você serão seus dentes, caso olhepara eles do jeito errado.O norte não é necessariamente sombrio. Nottinghamshire nem é tão ao norte— a não ser para quem nunca saiu do abraço infernal da M25 —, mas, de certaforma, é desprovido de cor, insosso, exaurido da vitalidade que se esperaria deuma área rural. Como se as minas que já foram tão comuns na região tivessem,de alguma forma, acabado com a vida do lugar.Por fim, depois de muito tempo sem ver qualquer coisa que se assemelhe acivilização, nem mesmo um McDonald's, passo por uma placa torta esemidestruída à minha esquerda: BEM-VINDO A ARNHILL.Embaixo, algum sacana metido a engraçadinho acrescentou: PARA SE FERRAR.Arnhill não é um vilarejo acolhedor. É amargo, ácido, inquietante. Viveisolado e olha para os visitantes com desconfiança. É estoico, imperturbável eenfadonho, tudo ao mesmo tempo. É o tipo de lugar que se ilumina quando vocêchega e cospe no chão com nojo quando o vê partir.Além de umas poucas fazendas e casas de pedra mais antigas nos arredores,Arnhill não tem nada de especial ou pitoresco. Ainda que a mina tenha sidodesativada definitivamente há quase trinta anos, seu legado ainda percorre olocal como minério na terra. Você não verá tetos de palha nem cestos suspensos.As únicas coisas penduradas do lado de fora das casas são cordas de varal e umaou outra bandeira de São Jorge.Varandas de tijolos sujos de fuligem alinham-se ao longo de uma ruaprincipal, onde há também um pub caindo aos pedaços: o Running Fox.Costumavam existir mais dois, o Arnhill Arms e o Bull, mas ambos fecharam hámuito tempo. Em outra época (minha época), Gypsy, o proprietário do Fox, faziavista grossa quando alguns garotos como nós, um pouco mais velhos, íamos lábeber. Ainda me lembro de vomitar três doses de uma bebida fortíssima — juntocom o que parecia ser metade das minhas tripas — no banheiro imundo e, logoque me recuperei, me deparei com ele ali parado, segurando um pano e umbalde.Ao lado, o Wandering Dragon, que vende peixe e fritas para viagem, tambémnão foi atingido pelo progresso, por uma nova pintura, nem — posso até apostar— por um cardápio novo. Uma lacuna nas minhas recordações: a lojinha daesquina, onde comprávamos todo tipo de bala e doce que se pudesse imaginar, sefoi. A filial de um supermercado Sainsbury's ocupou seu lugar. Imagino quenem Arnhill esteja completamente imune ao avanço do progresso.Com exceção disso, meus piores temores se confirmam: nada mudou.Infelizmente, o lugar está idêntico a como me lembrava.Avanço um pouco mais pela rua principal, passo pelo parquinho em mauestado e pela pequena reserva ecológica do vilarejo. Há uma estátua de ummineiro no centro, um memorial aos trabalhadores mortos no desastre da minade carvão de Arnhill em 1949.Percorro os principais pontos da região, subo uma pequena encosta e vejo osportões da escola. Instituto Arnhill, como é chamado agora. A estrutura ganhouuma repaginada; o antigo prédio de inglês, do alto do qual uma criança caiu certavez, foi derrubado e um novo pátio surgiu no lugar. Podemos revestir merda compurpurina, mas sempre será merda. Eu sei bem disso.Paro no estacionamento dos funcionários nos fundos do prédio e saio do meuvelho e cansado Golf. Há outros dois carros estacionados, um Corsa vermelho eum Saab antigo. As escolas quase nunca ficam vazias durante as férias de verão:os professores precisam fazer o planejamento das aulas, organizar cronogramas,supervisionar atividades. E, às vezes, participar de entrevistas.Tranco o carro e dou a volta no prédio, tentando não mancar a caminho darecepção. Minha perna está doendo bastante hoje. Em parte por ter dirigido, emparte pelo estresse de estar de volta. Algumas pessoas têm enxaqueca; no meucaso, a minha perna ruim é que dói. Eu devia ter trazido minha bengala, naverdade, mas detesto usá-la. Ela faz com que eu me sinta um inválido. Aspessoas me olham com pena, e não suporto que tenham pena de mim. A penadeve ser reservada para quem de fato a merece.Com um leve estremecimento de dor, subo a escada que leva à porta deentrada. Uma placa luminosa acima dela diz: "Bom, melhor, perfeito. Nunca seacomode. Até que o bom esteja melhor e o melhor esteja perfeito."Frase inspiradora. Mas não posso deixar de pensar na alternativa de HomerSimpson: "Crianças, vocês tentaram e falharam miseravelmente. A lição queaprenderam é: nunca tentem."Toco o interfone ao lado da porta. Ouço um clique e me inclino para falar.— Vim encontrar o Sr. Price.Outro clique, um zumbido penetrante de interferência e, em seguida, o sinalde que a porta está liberada. Esfrego o ouvido, abro e entro.A primeira coisa que me atinge é o cheiro. Cada escola tem o seu. Nasinstituições modernas, é de desinfetante e limpador de tela. Nas escolasparticulares, o cheiro é de giz, piso de madeira e dinheiro. O Instituto Arnhillcheira a hambúrguer velho, desodorizador de privada e hormônios.— Olá?Uma mulher de aparência austera, com cabelo grisalho curto e óculos, ergueos olhos por trás do vidro da recepção.Srta. Grayson? Claro que não. A essa altura ela já estaria aposentada. Entãopercebo. A verruga escura no queixo, de onde ainda brotam os mesmos pelospretos duros. Meu Deus. É ela! Isso deve significar que, aqueles anos todos atrás,quando eu a imaginava tão velha quanto um maldito dinossauro, ela tinha apenaso quê? Quarenta anos? A idade que tenho agora.— Vim encontrar o Sr. Price — repito. — Sou Joe... Joe Thorne.Espero algum sinal de reconhecimento. Nada. Afinal, faz muito tempo, edesde então ela viu centenas de alunos passarem por estas portas. Não sou maiso mesmo garoto magricela com um uniforme grande demais que atravessava arecepção correndo, torcendo para que ela não rosnasse meu nome e o dos meuscolegas e nos repreendesse por estarmos com a camisa para fora da calça outênis diferentes do padrão da escola.A Srta. Grayson não era de todo ruim. Muitas vezes eu via algumas dascrianças mais fracas e tímidas na sua sala. Ela fazia curativos em joelhos raladosse a enfermeira da escola não estivesse por perto, deixava que elas ficassem ali etomassem refresco enquanto esperavam para falar com algum professor, permitiaque a ajudassem com os arquivos ou qualquer outra coisa para aliviar um poucoos tormentos da hora do recreio. Fazia dali um pequeno santuário.Ela me assustava muito.Ainda me assusta, percebo. Ela suspira — de um modo que deixa claro que aestou fazendo perder seu tempo, meu tempo e o tempo da escola — e pega otelefone. Eu me pergunto por que ela está na escola hoje. Ela não está dandoaula. Embora, de certa maneira, eu não esteja surpreso. Quando eu era pequeno,não conseguia imaginar a Srta. Grayson fora da escola. Ela fazia parte daestrutura daquele lugar. Era onipresente.— Sr. Price? O Sr. Thorne o aguarda na recepção. Certo. Combinado. —Desliga o telefone. — Ele estará aqui em um minuto.— Ótimo. Obrigado.Ela volta para o computador e me ignora. Não oferece chá ou café. E nesseinstante cada um dos meus neurônios clama por uma dose de cafeína. Sento-meem uma cadeira de plástico, tentando não parecer um aluno que não fez o deverde casa e por isso está à espera do diretor. Meu joelho lateja. Coloco as mãossobre ele e, disfarçadamente, massageio a articulação com os dedos.Pela janela, vejo alguns adolescentes sem uniforme perto dos portões daescola. Eles bebem energético e riem de alguma coisa que veem no celular. Souinvadido por uma sensação de déjà-vu. Tenho quinze anos de novo, passo umtempo perto daqueles mesmos portões, bebo um gole de refrigerante e... sobre oque nos debruçávamos e do que ríamos antes da era dos smartphones mesmo?Revistas de música e outras pornográficas roubadas, acho.Baixo os olhos para as minhas botas. O couro está um pouco arranhado. Eudevia tê-las engraxado. Mais do que nunca, preciso de um café. Estou prestes ame render e pedir a droga de uma bebida quando ouço o barulho de sapatos nolinóleo polido e logo as portas duplas do corredor principal se abrem.— Joseph Thorne?Fico de pé. Harry Price é tudo que eu esperava, e menos. Magro, peleenrugada, cinquenta e poucos anos, usando um terno sem forma e mocassins semcadarço. O cabelo grisalho ralo está penteados para trás, e tem uma expressão dequem está sempre na iminência de receber péssimas notícias. Um ar de exaustivaresignação paira sobre ele como uma loção pós-barba vagabunda.Ele sorri. Dentes tortos, manchados de nicotina. Eles me fazem lembrar quenão fumo desde que saí de Manchester. Isso, associado ao desejo quaseincontrolável de cafeína, me faz querer ranger os dentes até desintegrá-los.Em vez disso, estendo a mão e me esforço para dar o que espero ser umsorriso agradável.— Prazer em conhecê-lo.Percebo que ele me avalia rapidamente. Mais alto que ele pelo menos cincocentímetros. Bem barbeado. Bom terno, caro quando era novo. Cabelo escuro,embora já com alguns fios grisalhos. Olhos escuros, agora mais injetados desangue. Já me disseram que tenho um rosto honesto. O que serve apenas paramostrar como as pessoas sabem pouco.Ele aperta minha mão com firmeza.— Meu escritório é por aqui.Penduro a bolsa no ombro, tento forçar minha perna ruim a andar direito esigo Harry até seu escritório. É hora do show.* * *— Então, a carta de recomendação de sua antiga diretora é excelente.Só podia ser. Eu mesmo a escrevi.— Obrigado.— Na verdade, tudo aqui parece de fato impressionante.Mentir é uma das minhas especialidades.— Mas...Começou.— Há um intervalo muito grande desde seu último emprego... Mais de umano.Pego o café com leite fraco que a Srta. Grayson jogou na minha frente. Tomoum gole e me esforço para não fazer uma careta.— Sim, bem, foi de propósito. Decidi que queria um ano sabático. Dei aulasdurante quinze anos. Estava na hora de me reabastecer. De pensar no futuro.Decidir qual rumo tomar depois.— E posso lhe perguntar o que fez no seu ano sabático? Seu currículo é umpouco vago.— Algumas aulas particulares. Trabalho comunitário. Dei aulas no exteriordurante um tempo.— É mesmo? Onde?— Em Botswana.Botswana? De onde tirei esse lugar? Acho que eu não seria capaz sequer deapontá-lo no mapa.— Isso é muito louvável.E criativo.— Não foi totalmente por altruísmo. O clima era melhor lá.Nós dois rimos.— E agora quer voltar a lecionar em tempo integral?— Estou pronto para uma nova etapa na minha carreira, sim.— Nesse caso, minha próxima pergunta é: por que quer trabalhar no InstitutoArnhill? Com base no seu currículo, eu diria que você poderia escolher qualquerescola.Com base no meu currículo, eu provavelmente deveria receber o PrêmioNobel da Paz.— Bem — respondo —, sou daqui. Fui criado em Arnhill. Gostaria de daralgo em troca para a comunidade.Ele parece pouco à vontade e remexe os papéis na mesa.— Está ciente das circunstâncias em que esta vaga se tornou disponível?— Li a notícia.— E como se sente a respeito?— É trágico. Terrível. Mas uma tragédia não deve definir uma escola inteira.— Fico contente de ouvi-lo dizer isso.Fico contente por ter ensaiado as respostas.— Embora eu imagine que todos ainda devam estar bastante abalados —acrescento.— A Sra. Morton era uma professora muito querida.— Tenho certeza disso.— E Ben era um aluno promissor.Sinto um nó na garganta, que logo passa. Aprendi a enfrentar momentosdifíceis. Mas por um instante isso me entristece. Uma vida de promessas. Mas avida não passa disso. Uma promessa, não uma garantia. Gostamos de acreditarque nosso lugar está definido no futuro, mas a única coisa que temos é umareserva. A vida pode ser cancelada a qualquer momento, sem aviso, semreembolso, não importa o quanto tenhamos avançado em nossa jornada. Aindaque mal tenhamos tido tempo de assimilar o cenário.Como Ben. Como minha irmã.Percebo que Harry continua a falar.— É óbvio que a situação é delicada. Perguntas foram feitas. Como a escolapode não ter percebido que uma de suas professoras era mentalmenteperturbada? Será que os alunos corriam risco?— Entendo.Sinto que Harry está mais preocupado com sua posição e com sua escola doque com o pobre Benjamin Morton, que teve o rosto destruído pela única pessoaque deveria estar ali para protegê-lo.— O que quero dizer é que preciso ser cauteloso na escolha de quempreencherá a vaga. Os pais precisam ter confiança.— Sem dúvida. Entenderei perfeitamente se houver um candidato melhor...— Não estou dizendo isso.Não há. Tenho certeza. E sou um bom professor (quase sempre). O fato é queo Instituto Arnhill é uma droga. Tem um desempenho ruim. É malvisto. Elesabe. Eu sei. Conseguir um professor decente para trabalhar aqui será maisdifícil do que encontrar um urso que não faça suas necessidades na floresta,ainda mais nas "circunstâncias" atuais.Decido insistir nesse ponto.— Espero que não se importe que eu seja sincero.É sempre bom dizer quando não se tem a intenção de ser sincero.— Sei que o Instituto Arnhill tem problemas. É por isso que quero trabalharaqui. Não estou à procura de uma tarefa fácil. Estou à procura de um desafio.Conheço estas crianças porque fui uma delas. Conheço a comunidade. Seiexatamente com quem e com o que estou lidando. Isso não me intimida. Naverdade, acho que o senhor descobrirá que pouquíssima coisa me intimida.Posso garantir que o conquistei. Eu me saio bem em entrevistas. Sei o que aspessoas querem ouvir. O mais importante é que sei quando elas estãodesesperadas.Harry se reclina na cadeira.— Bem, acho que não tenho mais perguntas.— Ótimo. Bem, foi um prazer...— Ah, na verdade, só mais uma coisa.Ah, que merda...Ele sorri.— Quando pode começar?Três 

...Onde histórias criam vida. Descubra agora