Carla
-Você não pode se culpar pelas coisas que aconteceram no passado Carla—disse a psicóloga Kate enquanto eu olhava fixamente para a caneta em seu bloco de anotações. Ela nem estava anotando. De certo já estava cansada depois de tantas visitas minhas a ela.
-Eu sei mas... isso tem vindo tão forte para cima de mim ultimamente. Tem toda a coisa da minha saída do antigo hospital e isso acaba me fazendo lembrar do Mike.
A Dr.Kate é uma renomada psicóloga do hospital New York Presbyterian Hospital (o mesmo hospital que eu trabalho), onde ela trata do psicológico de feridos e de médicos como eu.
*Piiiiiiii*
O som do alarme para o final do horário do almoço toca.
-Acho que está na hora de eu ir —Digo isso indo em direção à porta
-Carla—Paro na porta ao escutar a Dr
-Não se sinta envergonhada em contar isso para alguém. Sabe que eu vou estar aqui quando você precisar.
-ok...
Andando pelo corredor do hospital recebo um chamado do Dr.Louis.
-Carla, preciso de auxílio no bloco B, um homem acabou de passar por uma cirurgia depois de sofrer um acidente de carro na Madison Avenue. Ele tá anêmico e precisa de soro, vem rápido.
Pego o soro com a doutora Christa e mais umas anestesias. Chegando na sala do bloco B onde estava o Dr.Lois, encontro ele e a sua frente deitado na cama, um homem magro de aparência jovem, cheio de cortes no rosto. Parecia que ele não comia a dias.
-Carla que bom que chegou. Ele está precisando de soro urgente.—O doutor faz a mesma análise que eu.
Injeto o soro no paciente e ele começa a recobrar a consciência.
-Louis, vem rápido pro bloco A. Uma mulher acaba de ser esfaqueada no tórax pelo namorado. É urgente!—Escuto a voz da doutora Christa no alto-falante do Dr.Lois.
-parece que eu vou ter que sair por um tempo. Carla, te deixo encarregada de cuidar do paciente. Conto com você.
-T-Ta...
*Ele sai pela porta*
-Carla? Que nome bonito.—escuto a voz do paciente.
Era uma voz meio rouca e ele falava como se estivesse de ressaca. De certo por conta da anestesia.
-Obrigada.
-Você é nova no hospital? Pelo jeito que você gaguejou ao responde o Dr.Lois. Confesso, ele tem uma presença ameaçadora mas meio sem personalidade.
-É, eu sou nova aqui. Pedi transferência em janeiro do Med Center.
-Ótima escolha. Os médicos do Med Center são muito sem sal. Fora que fica no Queens.—Rio da fala dele
-Hahahahaha você não gosta do Queens?
-O pessoal de lá me irrita.
-Queens é a terra do spider man e tem o Cunningham Park.—refuto ele
-Então você é fã da Marvel? Além disso gosta de dar um bom passeio de bike.
-Eu vejo alguns filmes e leio algumas hqs e sim, eu gosto de dar um bom passeio de bike.
-Hahaha aiai—ele começa a refletir como um idoso de 80 anos contando sua história de vida.
-Quando você começa a dirigir por uma avenida em um dia sem muito movimento para esquecer dos problemas, você desmaia por estar a 3 dias sem comer e bate no caminhão de um homem transportando Pepsi. A vida é uma merda.—Ele me lembra do fato de estar anêmico e pergunto:
-Se for muito difícil responder não precisa ok? Mas por que você está a 3 dias se comer?—ele me olha com cara fechada
-A depressão tira a noção do tempo. Acabou que os dias se passaram e eu não percebi. E quando eu tomei uma atitude pra levantar da cama, as consequências da minha procrastinação apareceram.
-Eu tenho passado pelo mesmo. Mas de uma forma mais amenizada.
-a vida é uma merda—dizem os dois
Finalmente chego a perguntar a ele
-Afinal qual o seu nome?
-Julian, muito prazer.
-Que nome bonito...
Noto um curativo avermelhado em seu braço. Abro o curativo e noto um corte aberto que se abriu por conta da má aplicação dos pontos. Se eu não fechasse aquele curativo ele poderia pegar uma infecção. Tento entrar em contato com algum médico mas nenhum responde. Será que hoje é feriado e eu não sabia? Percebo que eu vou ter que aplicar os pontos.
-Merda
-Oque foi? Ele diz assustado
-Olha, pra ser direta, vou ter que aplicar melhor os pontos no seu braço ou a ferida vai infeccionar.
-E você sabe fazer isso?—Pergunta ele
-Lógico—Digo com confiança mesmo sabendo que não faço isso a uns 3 meses. Mas é moleza para uma enfermeira como eu. Pego a anestesia local e injeto nele. Começo a aplicar os pontos. Me inclino para a frente e isso faz com que minha manga comprida recue deixando meu braço a mostra.
-Ei...hum. Oque são essas cicatrizes no seu braço?Tremo com o comentário e isso faz com que eu me fure com a agulha. Fico paralisada e nem noto que me furei.
Começo a pensar em como iria responder ele, como iria sair daquela situação. Eu tomo cuidado para ninguém notar as cicatrizes dês de sempre. Por que fui me descuidar justo agora?
Repentinamente lembro de quando me perguntaram a primeira vez sobre as cicatrizes. Foi quando eu estava no Med Center. Depois de uma briga com o Mike, acordei no dia seguinte e fui pro trabalho de camiseta curta sem notar as cicatrizes. Quando cheguei lá, uma residente me perguntou sobre as cicatrizes. Quando notei, corri para o armário de limpeza e fiquei lá chorando até o turno da noite. Porque as cicatrizes continuaram? Não era como se o Mike me cortasse com facas. A única pessoa com que me abri sobre as cicatrizes foi a Dr.Kate. Volto a consciência e noto a barriga Julian se contraindo e ele fazendo uma expressão de falta de ar e prazer. Ele coloca a outra mão sobre o volume que estava se formando no meio de suas pernas na tentativa de tornar impossível minha percepção sobre a situação. Ele estava excitado? Com oque exatamente? Acho estranho mas volto a aplicar os pontos.
-Sabe. A violência foi algo muito presente na minha fase adulta. Eu me casei muito nova com um cara mais velho e isso acabou sendo uma das decisões ruins que eu tomei ao longo da vida.—respondo a ele na tentativa de fugir da situação que estávamos.
-Sei bem como é. Tinha um pai alcoólatra e perdi minha mãe muito cedo e o resto...é...o resto é óbvio. Mas... não acho que você deveria se sentir mal com essas cicatrizes. Você conseguiu superar o babaca que fez isso com você. Você se livrou dele. As cicatrizes de certa forma, sumiram junto com o cara. Eu acho que essas cicatrizes representam a superação. Um símbolo que mostra que você venceu oque era uma tortura.—Ele estava certo de alguma forma. Mas ainda não era tão fácil para mim. Assim como com a Dr.Kate, me senti confortável a "desabafar" com o Julian.
-Pronto. Terminei os pontos.—Finalmente noto o machucado que fiz com a agulha. Ele estende a mão não adormecida e chupa o sangue do meu dedo. Uma mistura de sentimentos tomou conta de mim. Desconforto por ele ser um estranho, mas ao mesmo tempo me senti acolhida. Prefiro não reagir sobre a situação. Saio da sala para buscar alguma comida para ele, afinal, ele está a 3 dias sem comer.
Enquanto saio da sala, noto ele me olhando fixamente. Levando em consideração que ele vai ficar internado por mais ou menos uma semana até receber alta, pode ser uma experiência diferente ter um paciente como amigo. Eu acho.
YOU ARE READING
Corte profundo
HorrorUma enfermeira que acaba de sair de um relacionamento abusivo fica encarregada de cuidar de um certo paciente. Os dois acabam compartilhando traumas e criando algum tipo de afeto. Oque ela não sabia era que o paciente tinha um longo passado sombrio...