ensaio sobre a cegueira

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dez dedinhos enconstam no par de corações flutuando ao longo da enseada: eles boiam sob a superfície cristalina de um casulo aquático como pequenas caravelas, suaves, lascerantes e brilhantes.

o sangue que pulsa do meu peito é infiel e pinta as rochas de vermelho, mas é claro que eu não as vejo. é para isso que existe cárcere privado pingando das minhas pupilas.

tateio pés sujos de areia pela costa. luz da lua lambe minhas bochechas, e prateado floreia pelas minhas pálpebras quando bato os cílios. eu rio. é engraçadinho sentir o coração saltar entre os dedos. tateio as minhas próprias pegadas, encontro uma lua de plástico na borda da areia, e algumas coisinhas mais, porque quero compensar todas as estrelas que caíram dos meus bolsos quando despenquei da atmosfera.

yuri anda mais à frente, quietinha, pequenininha quando dentro de um daqueles seus vestidinhos cor-de-rosa, com olhos brilhando, borboletas pintadas nas bochechas, dissertando sobre conchas, maresia, luz do sol e verde-musgo. ela faz meu peito chacoalhar como uma tempestade quando começa a repentinamente me descrever as cores do oceano, e sem querer receber nada em troca, ela acaba segurando meu corpo inteiro na palma das mãos.

"verde é como...como as mechas do meu cabelo," ela explica enquanto esfrega os dedos nas minhas bochechas. "como as borboletas no meu rosto, no seu..." uma pausa. "e, e...os corações nas suas mãos."

os babados do vestido resvalam nos meus joelhos, ricocheteando à ventania violenta. seus olhos buscam pelos meus, tentam me dizer algo, mas é sua boca que vem primeiro, quente e açucarada e perpetuamente grudada à minha. naquele momento, descubro que seus lábios tem formato de coração, e concluo em silêncio que talvez a minha cegueira seja nada além de um traço inerentemente referencial.

ela sussurra algo contra meu sorriso - nós vamos sair daqui.

e andamos de mãos dadas até o oceano.

BLIND SAILOROnde histórias criam vida. Descubra agora