Temporariamente Você: o início

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Essa havia sido a primeira vez... a primeira das muitas que se seguiram e, por isso, Kaya acreditava que esse episódio fora o responsável por definir todos os demais acontecimentos que se sucederam. Todas as pessoas que veio a conhecer, momentos passados e sentimentos experimentados, toda a sua existência em si... todos eles haviam sido definidos por esse único e singelo evento.

Como em um turbilhão de pensamentos e memórias, a moça retorna para as suas recordações, e elas surgem, nítidas e vívidas, como se estivessem acontecendo naquele exato momento.

Era um dia chuvoso e quente, há aproximadamente três anos, e ela retornava do primeiro dia de trabalho em uma loja de produtos de limpeza. Kaya estava cansada, irritada e um tanto decepcionada (passar o dia sorrindo e explicando as múltiplas funções do novo Limpa Tudo 6 em 1 não havia sido a carreira dos sonhos que tinha imaginado para si). No entanto, naquele momento, era o que tinha... o que lhe garantiria o sustento, ao menos ao longo daquele seu primeiro ano vivendo na cidade grande, sozinha. Dentro do ônibus lotado, permanecia em pé quase sem precisar segurar-se na barra de apoio, dado que os demais passageiros (a maioria aparentando estar igualmente cansado) mantinham-na em um minúsculo espaço, suficiente apenas para que ficasse ereta, segurando as alças da mochila junto do seu corpo.

O ônibus entrou dentro de um túnel escuro e, após alguns longos segundos na escuridão (ela não gostava da ausência de luz, sentia-se insegura), ele saiu novamente, para a claridade alaranjada do fim de tarde. A buzina fora acionada pelo motorista irritado e isso fez com que Kaya olhasse para a sua direita, tentando ver o motivo do barulho. Ela, no entanto, não conseguia, sua visão era bloqueada pela mulher que se encontrava ao seu lado. Essa mulher... não estava perto de si antes de o ônibus adentrar no túnel, Kaya tinha certeza de que era um adolescente com fones de ouvido acionados a volume máximo que encontrava-se próximo de si, ela estava certa disso, porque conseguia ouvir a música que o jovem escutava, The Chain, da banda Fleetwood Mac. Buscando pelo garoto, a jovem percorreu o olhar pelo ônibus lotado e foi então que percebeu... o veículo não estava mais lotado... encontrava-se quase vazio, apenas ela, a mulher desconhecida, algumas pessoas diferentes das que havia notado (suas roupas eram outras, os estilos, acessórios e penteados de cabelo) e o motorista...e a condução já não aparentava ser mais a mesma... o piso tinha um tom de verde, diferente do preto usual, os bancos eram amarelos, não mais azuis. A moça ainda estava confusa com a situação quando, sem nenhum sinal de que iria parar, o ônibus freou bruscamente. Kaya foi lançada para a sua direita e seu corpo colidiu com o da passageira em questão. A jovem tentou rapidamente voltar para o espaço que "lhe pertencia" nessa viagem de ônibus e, assim que se recompôs, tentou desculpar-se com a mulher com quem fora de encontro: "Me desc..." a frase permaneceu suspensa no ar, dado que, ao dirigir o olhar para a sua direita, não mais viu a pessoa que procurava.

Não viu também nenhum ônibus ou sequer ouviu o som da chuva batendo sobre a estrutura do transporte público e nem sentiu o cheiro forte de suor que imperava dentro do ônibus. Muito pelo contrário, Kaya viu-se parada, em pé, em um campo florido, com o sol banhando a sua pele, o canto de pássaros pairando no ar e o cheiro refrescante e acolhedor de lavandas penetrando em suas narinas.

Após perceber-se inserida no cenário adverso àquele em que se encontrava, sentiu uma outra mão apertar-lhe a sua! Olhou para a sua direita e, ao seu lado, a mulher do ônibus sorria. Kaya estava certa de que era realmente a mesma mulher. No entanto, conseguia identificar notáveis diferenças na desconhecida. Seus cabelos, diferentemente de alguns segundos atrás, no ônibus, agora estavam soltos. O sorriso passara a ocupar o lugar da expressão séria que sustentava, tão séria que fazia com que os seus lábios permanecessem apertados, finos como uma única linha reta. Além disso, a sua postura estava mais... mais aberta, ombros e cabeça erguidos, não mais aparentando o cansaço que a figura do ônibus demonstrava.

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