Capítulo I

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Capítulo revisado em: 30/03/2023

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Chifuyu deslizava o lápis sobre uma folha de caderno quando empacou pela terceira vez.

Sua reação, diferente das anteriores, foi suspirar e entregar os pontos: terminaria aquela droga em outro momento. Desligou o abajur e saiu do quarto. Na sala, a brisa vinda da varanda não serviu de alívio para sua mente sobrecarregada, mas dirigiu-se até ela, de toda forma. Segurando o peitoril e decidido a esquecer seu dever de matemática, ele observou a rua e os apartamentos vizinhos. Através das dezenas de janelas luzes piscantes indicavam maratonas de filmes e as estáticas, jantares pacíficos, e, dado o cheiro de especiarias que rodopiava no ar, Chifuyu apostou que a segunda opção vigorava. Isso o lembrou de que precisava preparar algo para ele e sua mãe, caso contrário receberia palavras frias e decepcionadas quando ela chegasse do trabalho.

Esfregou o olho direito, cujo esparadrapo ele retirou mais cedo. Queria parar de pensar tanto, mas infelizmente isso era tudo o que fazia. Recriminava-se por ser tão sensitivo, mas o que mais podia fazer? Aparentava tranquilidade na maior parte do tempo, como se estivesse recuperado, entretanto bastava se ver sozinho, sem a mãe ou os amigos por perto, para que as lembranças se tornassem sua única fonte de companhia.

Mas não sou só eu que ando me sentindo sozinho, lógico, suspirou. Incontível, inclinou-se um pouco sobre a sacada e, espichando o pescoço, avistou a ponta da varanda do apartamento dois andares acima. Chifuyu sabia que a taciturnidade do imóvel era muito maior que a de sua própria casa.

Conforme a rotina, ele visitou-a naquela tarde. A solidão da sra. Baji lhe era comovente. Nas primeiras semanas depois do enterro, após reunir coragem suficiente, ele começou a tentar uma aproximação com ela. A princípio, não teve grandes avanços: a sra. Baji, certamente na etapa "negação" do luto, não queria saber de conversa com os "amiguinhos" do filho, amaldiçoando-os de "Malditos delinquentes que mataram Keisuke".

Apesar das constantes e, às vezes, dolorosas repelidas dela, Chifuyu não desistiu. Jamais a refutava quando alvo de seus xingamentos, mas isso não significava que ele pararia de insistir em ajudá-la. Sua primeira vitória aconteceu em uma tarde frígida, quando, como agora, observava a rua da varanda. Chovia na ocasião, e, devido às ruas desertas, não foi difícil para ele notá-la no começo do quarteirão carregando várias sacolas, e flagrou o momento exato em que três delas se romperam, fazendo frutas e congelados rolarem pelo asfalto sujo.

De pronto, desceu ao encontro dela. Ao se aproximar, percebeu que a sra. Baji, ao invés de recolher as compras, rendeu-se à exaustão: desabou no chão e entregou-se a um choro doído.

Era óbvio que a frustração dela não provinha só dos congelados ensopados no asfalto. Desde que tudo aconteceu, ela lidava com o luto sozinha, e Chifuyu não conseguia imaginar quão dolorosa era a situação dela.

Anunciou-se com cautela, e sentiu alívio quando, pela primeira vez, não foi repelido. A sra. Baji enxugou as lágrimas de uma maneira meio orgulhosa e anuiu à ajuda que ele oferecia. Chifuyu levou dois tempos para correr para casa e voltar com uma bolsa grande o bastante para comportar todos os alimentos derrubados, e então acompanhou-a de volta ao prédio.

Assim que entraram no apartamento dela, ele se prontificou para guardar as compras, deixando-a aboletada no sofá com um copo d'água em mãos. Aquele naturalmente não era um ambiente novo para ele, mas em momento algum Chifuyu se atreveu a olhar demais, especialmente para o corredor de acesso às acomodações de mãe e filho.

Mexendo nos armários empoeirados, escutou os soluços regressarem a sra. Baji. Quando percebeu, esmagava um saco de biscoitos. Respirou fundo e, após terminar de guardar as compras, voltou à sala. A vulnerabilidade no rosto dela era acentuada, mas ele sabia que era melhor distraí-la ou, pelo menos, mostrar como poderia ser útil.

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