Está lá fora. Eu sei que está. Sempre está. Sempre está. Seja uma rua, um cômodo, ou logo atrás de mim. Seja como sombra. Na janela, no corredor ou através da rua. Um vulto, à noite. Me tira o sono. Me tira a sanidade. Me tirou todos que eu amava, porque ninguém acreditou em mim. Ninguém parece ver isso. Ninguém conseguia ver ela, mas ela está lá. Está sempre lá. E sempre vai estar. Em toda e qualquer refeição que eu tentar fazer, toda vez que eu tentar comer algo. Toda vez, todos esses anos. E a culpa é minha, a culpa é toda minha.
Eu abro a cortina e consigo vê-la. Atrás de uma árvore. É ridículo, ela está tentando ficar escondida? Seu corpo todo é visível, não é uma árvore daquele tamanho que iria escondê-la. Ela só deve estar aproveitando a sombra. Se deleitando. Esperando. Me vigiando. Bovino maldito, saídos das entranhas odiosas do inferno. Da cor do enxofre. Criatura magra e decrépita que me atormenta há tantos anos. Que me nega qualquer paz. Qualquer chance de normalidade. Uma refeição. É tudo que eu queria: uma refeição.
E aqui estou. Com fome. Esperando o último momento possível para comer. Para quê comer? Agora é puramente um ato de sobrevivência. Não há mais prazer nisso. Sou o único que percebe isso! Minha barriga ronca, implorando por alimento, mas meu nojo tenta empurrar essa fome para o eterno "depois". Anos vivendo desse jeito e ainda não me habituei. Não consigo aceitar. Seria eu o louco por não aceitar?
Como um tubarão atraído pelo sangue, ela está mais próxima. Eu sinto. Eu sei! Não quero procurar. Não, eu não quero. Não quero olhar para ela. Aquele corpo animalesco desnutrido, magro, e que ainda assim se mantém de pé. Se mantém a me assombrar. Não sei se aquilo é de fato uma vaca ou um ser horrendo, saído de algum lugar onde os olhos de Deus não observam e apenas simula a forma de uma vaca. Ou se é apenas meu cérebro, na falta de uma referência para algo profano e indescritível, me fazendo crer que é uma vaca. Uma vaca! Devo estar ficando louco. Eu devo ser louco. Ou um maldito. E não importa o que eu cozinhar, o que eu pedir e o que eu tentar comer, no fim... No fim vão ser as fezes malditas daquela Vaca. Que piada doentia é essa?
Me pergunto se minha fome já a atraiu até minha janela. Talvez esteja no corredor. Talvez ela já tenha entrado. Me deito na cama e me cubro com as cobertas, como uma criança com medo. Um animal assustado. Só de ver ela já sinto o gosto na minha boca, sinto meu estômago se revirando.
E a culpa disso é minha.
Veja, eu era só uma criança quando isso tudo começou. Como você pode culpar uma criança, com seus sete, oito anos, por isso? Deveria ser só uma brincadeira, certo? Uma cantiga de roda, versinhos rimados para crianças brincarem. Talvez houvesse uma verdade, tão antiga quanto o tempo, por trás daquelas palavras. Eu não quero saber. Não quero entender. Sinto medo disso. Medo de piorar a situação. Medo de causar ainda mais desgraças na minha vida.
Era um dia normal, sabe? Sair para brincar na rua de tarde, depois de correr para acabar as lições de casa. O sol agraciando minha pele. Eu lembro até hoje, minha mãe tinha me feito um nescau antes de eu sair para brincar, geladinho. Hoje, só a cor bastaria para me enojar. Iria olhar para janelas, amedrontado.
"Vá brincar que vou fazer um bolo" ela disse, sacudindo um pano de prato.
E eu saí. Brinquei de pega-pega com as crianças da rua. Conversamos sobre os desenhos daquela manhã. Jogamos futebol, polícia e ladrão, esconde-esconde. Ah! Como eram bons aqueles tempos.
E então uma das crianças disse:
"— Vaca Amarela; pulou a janela! Quem falar primeiro tem que comer toda a bosta dela!"
Todos riram e taparam suas bocas. Se calaram, com sorrisos. Menos eu. Menos eu, pois veja, eu achei que seria engraçado falar mesmo assim. Porque era apenas isso: uma brincadeira. Eu não sabia. Eu não sabia! Como eu poderia saber?
Eu ri. Eu falei. Falei de propósito, tirando sarro. Eu provoquei. Eu... Eu pedi por isso. Me pergunto se não foi desde aquela hora que a Vaca Amarela começou a me seguir. Eu ri. Eu ri porque não iria ficar quieto. Eu ia falar. E eu falei. Todos me olharam de modo estranho. Como se em surpresa, mas então como se houvessem séculos de distância entre nós. O que eu havia feito?
Elas pararam de falar comigo. Ou eu não entendia o que elas diziam. Não lembro direito. Lembro de ter achado algo estranho, sim, algo estava estranho e ido para casa. E eu juro que desde aquele momento isso tem me seguido.
Quando voltei para casa, minha mãe estava estranha. Só falava em resmungos difíceis de entender. Mas, ei, o bolo estava pronto. Sobre a mesa. E para uma criança, isso que importa. E quando eu comi... Aquilo não era bolo. Entre o tempo de eu pegar uma garfada do bolo e por na boca... Aquilo já não era mais o bolo de chocolate. O cheiro era tão bom. Aquilo tinha entrado pela janela. E o corpo de uma vaca jamais conseguiria, ou melhor, deveria ter conseguido entrar pela janela.
O que eu coloquei na boca era bosta.
E minha mãe olhou para mim, com o olhar vazio, e me culpou quando eu cuspi aquilo e comecei a chorar. Me culpou por ter cuspido o bolo dela. E eu tentei explicar, assim como expliquei toda vez, que aquilo não era bolo. Aquilo não era comida. E a Vaca estava ali. Me encarando. Me observando. Olhos brancos e que pareciam brilhar como dois faróis. Nunca acreditaram em mim. Ninguém nunca percebeu que todo alimento que eu tentava comer se tornava merda. Ninguém nunca percebeu a vaca,cadavérica e amarela, que não importa onde, sempre dava um jeito de entrar pela janela e me observar comendo. Ninguém nunca viu. Ninguém nunca acreditou. E chegou uma hora, que talvez algo em mim tenha morrido, pois eu parei de tentar contar o que acontecia.
Eu... Teria que comer toda a bosta dela?
E veja, eu já tentei fugir dela! Já tentei comer em aviões, praias, fugir para lugares isolados, o que quer que fosse. Mas ela sempre chega. Eu vi aquela pele seca e nojenta se deformar e entrar pelas frestas de uma janela de um avião e se reformar na forma daquela criatura, no meio do corredor. Já vi ela saindo das paredes, na ausência de janelas. Ela sempre consegue. Leis do nosso mundo não parecem afetar ela, e ela os retorce para chegar até mim.
Eu já tentei matar a Vaca Amarela. Ah sim, eu tentei. Ela não morre. Ela sequer reage. Queria poder dizer que lutamos e que ela reagiu a alguma vez que enfiei uma faca nela. Ou tentei atropelar ela. Ou queimar ela, serrar ela, afogá-la. Mas não. Não, não. Ela só não morre. Queria que ela emitisse algum som, algum riso de escárnio ou bufasse de ódio, mas ela apenas me assiste em silêncio. Toda vez. Sua indiferença me fere. O isolamento de um mundo que não enxerga o que sofro me afoga. E a bosta me enoja.
E cá estou eu, sendo arrastado pela minha fome até a cozinha. Me apoiando em paredes, devido a fraqueza de meu corpo, que grita por nutrientes. Já vejo os olhos dela do outro lado da janela da cozinha, me observando. Queria poder dizer que riem de mim, mas não. Apenas me observam. Sua pele se estica e se espreme, passando pelas frestas de uma janela tão bem fechada e protegida que talvez nenhum ladrão conseguisse ou cogitasse assaltar minha casa pela janela. E eu vejo aquela pele flácida, elástica, atravessando o espaço e se reformando no chão da minha cozinha. Ossos e cascos surgem. Patas, um torso, um corpo. Um rosto. Dois olhos.
Tento não olhar, mas meus olhos teimam em querer ter um vislumbre daquilo. Afinal, em um cômodo escuro, como não ser atraído por aquela fonte de luz? Eu cedo à tentação e encaro aquele rosto bovino magro e amarelado. Meus olhos perguntam, uma vez mais:
"Por quê?"
Sem resposta. Como sempre. Sempre sem.
Eu quebro o contato visual e vou pegar algo para comer. Tem um pote com carne de panela e arroz. Minha mãe que fez. Era meu prato favorito dela. Era muito bom. Eu sinto falta de um gosto que já nem me recordo do gosto. Meus olhos voltam a encarar a Vaca Amarela.
E eu como a bosta dela.
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A Vaca Amarela
Short StoryQuem diria que seria mais que uma brincadeira infantil, não é? Que tipo de horrores alguém que falou primeiro, de propósito, vive?