dysphorie

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Largo Grimmauld

Ela se olhava no espelho, se perguntando o por que de odiar tanto o que via. Sempre fora assim, mas aquela não era ela. Aquele não era ele.

O espelho refletia seus cabelos escuros como o piche, que chegavam um pouco acima de seus ombros, e causavam um contrate tão bonito em sua pele doentiamente branca. As ondas estavam mais definidas pelos produtos usados para deixa-lo macio e cheiroso. 

O vestido preto marcava a curva de seu quadril e cintura, sempre tão elogiadas pelo pai. Seus seios eram mantidos apertados e levantados pelo corset, impedindo que respirasse com clareza.

Seu corpo magricela, resultado de falhas tentativas de diminuir seus traços femininos se inclina na pia, o deixando enjoado ao observar o brasão da família Black posto em seu peito, por cima do tule que cobria seus ombros.

Respira fundo.
Uma.
Duas.
Três vezes.

Os olhos azuis cinzentos vermelhos por conta do esforço que fazia para segurar as lágrimas. Não choraria. Não dessa vez.

Os lábios finos pintados com um tom natural, as maçãs do rosto rosas pela tentativa desesperada de suas criadas de tentar fazer com que parecesse saudável.

As pálpebras pesadas com os cílios falsos que o forçaram a usar.

Levanta a cabeça, encarando o espelho, se sentindo corajoso por enfrentar algo que tanto lhe apavorava. Seu próprio reflexo.

Abre a torneira, deixando que a água gelada corra por sua mão, se sentindo renovado, o líquido lhe refrescando, sentindo-o esfriar suas mãos febris.

Cuidadosamente, coloca sabão, esfregando a mão e observando a espuma e as bolhas se formarem, e começa a lavar seu rosto, deixando que um pouco de sua dor desça ralo abaixo junto com toda aquela maquiagem.

Fecha o fluxo de água quando termina o trabalho, voltando a se olhar, mas dessa vez, com um sorriso no rosto. Finalmente sabia quem era. Finalmente estava se libertando. 

Se agacha, abrindo a fivela do salto alto que usava, pisando delicadamente no chão gelado. Um pé de cada vez. Sua altura diminui, mas sempre fora alto para uma garota. Mas tinha a altura perfeita para um garoto. 

O aperto em seu coração diminuí, fazendo com que se sinta mais leve. Não se sentia triste, nervoso ou preocupado. Aquele era para ser seu dia. Não o dia dele, mas dia dela. Mas ela nunca existiu. 

Leva as próprias mãos para trás, afrouxando o corset apertado, finalmente respirando sem dificuldades. Seu coração parece se libertar junto com o aperto. O tecido frágil de sua roupa roça em seus braços, e não consegue resistir ao impulso de agarrar agressivamente sua saia e puxa-la,  rasgando o vestido. 

Ele ri. Ri tanto que suas bochechas doem. Mas se pudesse, ficaria naquele momento para sempre. Ri enquanto olha a seda cara que sua mãe insistira que usasse despedaçada em suas mãos. Ri porque uma parte dela se foi. 

Ele gira no lugar, dançando ao som de sua felicidade, tropeçando e rodando. 

Quando se sente tonto, para, as bochechas naturalmente coradas agora, seus olhos sem o vazio inexpressivo que sempre o acompanhara. Agora eles reluziam sua alegria, brilhando como a estrela que lhe dera o nome. 

Se apressa em tirar o que restou de seu vestido, encarando as roupas que roubara de seu irmão. Seu reflexo ainda mostrava o corpo feminino que lhe fora dado quando nasceu, mas aquilo não importava. 

Retira o sutiã. pegando o pedaço de tecido que separara, o enrolando ao redor do corpo, fazendo com que ficasse mais reto. Sorriu quando encarou o reflexo. Já não lhe era tão assustador assim.

Passou a camiseta preta pelos braços, fechando um botão atrás do outro, tomando cuidado para não se confundir. O próximo foi a calça social, da cor roxo escuro. Era um de seus ternos preferidos. Coloca o blazer logo após, da mesma cor que a calça. Decide que não precisa da gravata. 

Seu sorriso aumenta mais ainda, o que não parece possível. Estava parecendo um garoto, e nunca se sentira tão feliz com isso. 

E então caí na gargalhada, porque finalmente escutar o som de sua própria risada era bom demais. Se diverte em sua nova dança, agora de suas mãos, que trabalham rápida e animadamente em seu rosto, fazendo um contorno mais forte em seu maxilar e mandíbula, ficando parecidíssimo com seu irmão. 

Seu irmão. 

Se perguntou o que ele acharia disso, mas não importava. Era um ato rebelde, que se postava contra as crenças de seus pais, então sabia que ele ficaria feliz com isso. Mas isso não dizia respeito a Sirius. Dizia respeito a ele. 

Pega as mechas da frente de seu cabelo, o puxando para trás, deixando seu rosto visível. Nunca se sentira tão confiante quanto agora. Amarra atrás da cabeça, formando um mino rabo de cavalo, igual o penteado que o outro Black usava de vez em quando. 

Se senta nos azulejos gelados, colocando o sapato social que roubara de seu irmão. Tivera que colocar O Pasquim amaçado nas pontas, porque o pé dele era maior que o seu. Esperava que Pandora não ficasse chateada caso soubesse.

Quando termina, analisa o resultado no espelho de corpo inteiro, e se sente mais bonito do que nunca. Melhor, se sente mais ele do jamais esteve. 

As lágrimas começaram a escorrer por seu rosto, e ele não pode evitar. Porque finalmente não precisava mais esconder quem era. Estava livre. Sabia o que tinha que fazer. Fugiria, e largaria tudo o que o impedia de ser feliz para trás. Sua mãe, suas responsabilidades como herdeiro Black, e, principalmente, a responsabilidade de ter que ser quem nunca fora.

Porque Leo Nor Black nunca existiu. Sempre fora Regulus Arcturus Black. E agora que sabia disso, a leveza que sentia era como se flutuasse. 

𝘿𝙔𝙎𝙋𝙃𝙊𝙍𝙄𝙀Onde histórias criam vida. Descubra agora