Mais uma noite inteira sem dormir, a insônia estava me matando pouco a pouco. Já são quatro noites que não consigo grudar os olhos, só faço rolar na cama. Incrível, quando se tem insônia parece que sua vida acontece em flashes. Não consigo me lembrar o trajeto que fiz, ou o que conversei no caminho até aqui, mas sei que agora estou no ponto do ônibus, com meu melhor amigo, esperando o ônibus que nos levará a escola. Não consigo associar o que Alfie me dizia, provavelmente algo sobre criptomoedas, ele é simplesmente obcecado por esse assunto.
Nosso ônibus chegou, e logo a porta de entrada se encheu de pessoas. Conseguimos entrar antes da maioria, e logo que entrei tive um déjà vu, tive sensação de que já havia visto todas aquelas pessoas do ônibus, porém não conhecia ninguém além do meu amigo. Na verdade, recentemente eu tenho tido déjà vu constantemente, acredito que causados pela recente piora da minha insônia.
Fomos direto para o final do ônibus e nos sentamos na última fila, eu na cadeira do meio e Alfie a minha direita. Ao meu lado esquerdo estavam uma criança e sua mãe, e ao lado de Alfie o acento estava vazio. A criança me encarou e disse:
- Vocês não deviam estar sentados aí!
A mãe da criança brigou com ela dizendo que isso era rude e não devia ser dito, e em seguida nos pediu desculpas. Após esse momento resolvi por uma música pois a viagem é um pouco demorada. Abri o Spotify e coloquei para tocar no aleatório, a primeira música a tocar foi If I could see the world (thru the eyes of a child) da Patsy Cline & friends, havia meses que não ouvia essa música, e então resolvi aproveitar esse momento para descansar os olhos.
Uma música foi tocando atrás da outra e acordei com Alfie me cutucando dizendo que estávamos próximos da escola. Não pude deixar de perceber como minha vista estava embaçada, mas não ia reclamar pois tive o prazer de dormir por uns vinte minutos. Enquanto colocava meu fone e celular em minha mochila a criança repetiu novamente:
- Vocês não deviam estar sentados aí!
A mãe da criança ficou morta de vergonha de novo e pediu desculpas mais uma vez. Nosso ponto de descida estava próximo e resolvi me levantar, e enquanto Alfie se preparava para levantar escutei o barulho de dois carros batendo em frente ao ônibus. Mal tive tempo de virar em direção ao barulho quando senti meu corpo sendo arremessado. Quando encontrei o chão senti outro impacto vindo da parte de trás do ônibus, e pude escutar o barulho de vidro quebrando, além de sentir os cacos voando no meu rosto.
Ainda desnorteado pude perceber a gritaria dentro do ônibus. Olhei para trás procurando por Alfie, quando percebi que o que bateu atrás do ônibus foi um caminhão que carregava vigas de metal, e logo em seguida meu cérebro processou a imagem do meu amigo com um olhar fixo e uma viga de metal atravessando seu pescoço. Simplesmente não conseguia acreditar. As pessoas ao redor quando viram a imagem do menino empalado entraram em completo desespero e todos correram para tentar sair do ônibus, enquanto eu tentava alcançar meu amigo na esperança de ele ainda estar vivo. Todos começaram a me empurrar para passar no estreito corredor até que cai no chão e simplesmente fui pisoteado pelas pessoas. Me encolhi para me proteger, mas...
- HORÁCIO! Acorda, estamos quase no ponto!
Acordei desnorteado, com Alfie ao meu lado no ônibus e não podia acreditar. Ele estava vivo! Não faz sentido, tudo pareceu tão real, meu corpo até doía das pancadas que sofri. Peguei meu celular do bolso, tirei o fone e os coloquei na bolsa e a criança ao meu lado falou.
- Vocês não deviam estar sentados aí!
A mãe da criança ficou morta de vergonha de novo e pediu desculpas mais uma vez. Nesse momento veio o déjà vu. Não conseguia acreditar, será que estava acontecendo tudo de novo? Olhei pela janela e vi atrás de nós o caminhão lotado de vigas. Não podia ser. Instintivamente eu tirei meu celular da bolsa e joguei ele embaixo do banco da frente.
- Alfie, tenta pegar para mim por favor.
Enquanto ele se abaixava para pegar meu celular escutei o barulho dos carros colidindo em frente ao ônibus e me agarrei em Alfie o mais rápido que pude. Senti a freada do motorista, mas dessa vez não fui arremeçado, e um segundo depois veio o impacto do caminhão batendo atrás de nós, o barulho do vidro se partindo e então os gritos das pessoas. Continuei abaixado por alguns segundos segurando a cabeça do Alfie, e quando me levantei deparei com uma viga de metal atravessando o vidro exatamente onde o Alfie deveria estar.
O que havia acabado de acontecer? Será que eu ainda estava sonhando? Alfie entrou em desespero do meu lado, começou a chorar e me abraçou. Em meio a toda gritaria, e os soluços de Alfie consegui ouvir um leve riso vindo do acento ao lado dele. Não lembro de haver alguém sentado ali. Olhei por cima do ombro do meu amigo e vi um homem com seus trinta anos vestindo um terno, ele ria em um tom ameno, mas sem parar. Antes que eu pudesse perguntar qual a graça ele falou enquanto batia palmas:
- Uau, isso foi incrível de se assistir, uma pena que tenha que ser corrigido.
E então, imediatamente ele puxou uma arma do interior de seu terno, deu um tiro na cabeça de Alfie, e quando ele apontou a arma para minha cabeça tive mais um déjà vu.
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Horácio
Short StorySonhar é algo tão comum que às vezes nem lembramos o que sonhamos. Mas, o que será que esses sonhos podem se tornar quando dormir é algo inabitual?