No dia seguinte, durante o café, me dei conta do que estava prestes a acontecer. O falatório da tenda de refeições era um misto de sussurros baixos e poucas risadas, um murmúrio menos frenético, sem os gracejos habituais de alguns garotos ou vozes estaladas. Era cedo e ninguém estava confortável com a ideia de que aquele poderia ser seu último pedaço de pão, o último gole de chá, a última olhada que daria no amigo ao lado. Na verdade, todos os dias poderíamos estar vivendo nossos últimos momentos, mas ninguém pensa assim até que o perigo esteja à porta.Iríamos atravessar a Dobra. Iríamos entrar na própria escuridão — e não havia luz para nos defender, para espantar os monstros que nos assombrariam, como acontecia nas histórias que nos contaram durante a infância. Recolhi alguns mapas naquela manhã, tentando memorizar as primeiras ruas que veríamos na vila de Novokribirsk. Mas o burburinho dos inúmeros esquifes que nunca haviam chegado ao outro lado persistia nos meus ouvidos. Uma cicatriz no mapa; esse era o Não Mar que eu conhecia. Um paredão negro, denso, escuro, manchando a paisagem ao fundo; essa era a Dobra que eu tinha visto.
Tentei falar com Maly antes de partirmos, mas ele parecia estar em lugar nenhum. Alguns olhares e um aperto forte em nossas mãos, foi tudo o que compartilhamos na tenda de refeições. Parecia certo e familiar, reconfortante. Mas agora eu queria mais. Queria sentir sua mão na minha mais umas vez, me lembrando de que eu não estava sozinha — de que nós não estávamos sozinhos nesse lugar. Minha vida toda foi compartilhada com Maly. Desde o momento em que cheguei a Keramzim, passando por quando meu pai me encontrou e eu me recusei a ir embora sem Mal, pela viagem no Mar Real, o resto de nossa infância em Novyi Zem...
Agora, eu já podia ouvir os gritos de um homem reunindo os que iriam entrar na Dobra. Me virei, derrotada, pensando que eu falaria com ele em breve, que minha "caçada" por entre as tendas era a tolice de um nervosismo do momento. Segui rumo ao meu destino, queixo erguido e ombros retos, mãos suando e o pânico crescendo com a mancha negra em minha visão. Talvez fosse melhor não ter o encontrado, assim ele não veria o medo em meus olhos.
— Ei, Alina! — uma voz irrompeu ao fundo, me tirando do transe.
Metade do meu corpo girou e me deparei com Alexei. O jovem cartógrafo com quem eu conversava as vezes, um meio sorriso bobo em seu rosto.
— O que? — meus olhos piscaram. Por que ele parecia descontraído?
— Aproveitando que o Maly não está por perto —
— Você o viu? — me aprontei em dizer.
— Não... — suas mãos se atrapalharam em seus fios loiros, o cenho se franzindo com minha pergunta. — Guarda uma dose de kvas pra mim em Novokribirsk?
Então ele também não tinha visto Maly. Suspirei, desiludida de encontrá-lo.
— Não sou babá de nenhum kvas para guarda-lo — disse, girando meus pés outra vez e me movendo para o esquife onde Maly devia estar.
Meus passos se tornaram largos e eu pude ouvir Alexei tentando me acompanhar ao fundo. O esquife não estava longe e algumas pessoas já embarcavam. Os Grishas já estavam posicionados, dois Aeros no mastro e alguns keftas vermelhos no deque. Tentei não me concentrar nas areias secas sob meus pés, no cheiro estranho que pairava tão perto da Dobra.
— Isso não foi um não — insistiu ele.
— Se você calar a boca pode ser um sim — cedi.
Não vi seu rosto, mas pude jurar que ele estava sorrindo. Quando tudo isso terminasse, eu ficaria feliz em beber com qualquer um.
Entramos no esquife. Parecia mais um trenó, um barco feito para as areias da Dobra. Eu e Alexei ficamos ao fundo e meu coração se aliviou quando vi Mal junto aos outros rastreadores, na lateral a nossa frente. Quando finalmente ele me viu, seus olhos estavam cheios de dúvida, o desconforto estampado na linha entre suas sobrancelhas. Tentei dar um meio sorriso falso, mas que eu esperava que transmitisse um "vai ficar tudo bem". Minhas mãos giravam uma na outra, os dedos traçando em torno do metal frio em meu dedo, como sempre acontecia quando o perigo nervosismo me atingiam. Em último caso, me lembrei.
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Where do you belong?
FanfictionAlina Starkov nunca pertenceu à lugar algum. Aos oito anos seu pai misterioso reapareceu em Keramzim e a concedeu um desejo: ir para qualquer lugar que ela quisesse. Junto com o garoto á qual era inseparável, ela sai do orfanato e corre para sobrev...