Capítulo 63

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  Nunca mais bebo.

  Parece que é a segunda vez que penso isso desde que cheguei à Velaris. Mas essa é a verdade. Eu nunca mais bebo vinho feérico se não ganhar um milhão de reais em troca. A dor de cabeça não compensa a sensação deliciosa que toma meu corpo quando estou nas nuvens da embriaguez.

  Com certeza só fico assim por causa do meu lado humano. Esse mesmo lado me faz arrastar pra fora da cama, gemendo de dor de cabeça.

  As cortinas estão fechadas, o quarto escuro, mas tenho certeza que já é manhã, e o sol já está alto e brilhante. É uma benção não ter ele alfinetando meus olhos agora.

  Eu vou para o banheiro enorme ao lado do quarto, abrindo a porta como se meus braços fossem de amebas. A banheira grita por mim, redonda e enorme, mas eu sigo para o chuveiro. Mas então paro quando toco a bainha de uma camiseta que trouxe na mala, preta e larga até os joelhos. A camiseta de Lucian, na época que eu amava roubar suas roupas pra ir pra escola.

  Lembro vagamente de Azriel me carregando até o quarto, mas eu capotei como um neném. Mas pensar que ele tirou minha roupa, me trocou, faz meu rosto pegar fogo de vergonha. Eu espero muito que ele não tenha feito isso.

  Eu tiro a camiseta num puxão, e entro debaixo da água corrente morna. Ela parece fazer milagres na minha cabeça, me deixando mais sóbria do que ja estive em toda vida.

  Passo um shampoo de lavanda, um sabonete que parece ser de rosas, um óleo que tem cheiro de baunilha. Provavelmente vou sair desse banheiro cheirando a sobremesas diversas, e adoro isso.

  O óleo escorrega nos meus dedos, conforme minhas mãos passam na barriga, sobre as queimaduras. Retorcidas, mas não vermelhas como antes. As cicatrizes formam desenhos estranhos, e enquanto passo a mão por cada um, até chegar ao peito direito, eu solto o ar, mapeando mentalmente cada detalhe delas. São iguais às de Azriel. Aposto que se cobrisse meu corpo com sua mão, pareciam parte do mesmo corpo, nenhuma diferença.

  Desço os dedos para os quadris, até a metade da coxa, lembrando e relembrando coisas que não queria, mas é impensado. É como ver uma abelha e automaticamente pensar em pólen ou flores.

  Eu olho para minhas cicatrizes e me lembro de Felipe. Do meu pai. Da vida que eu poderia ter tido mas Felipe destruiu. Ele sabia o que estava destruindo, dava pra ver em seu olhar, enquanto se jogava no fogo como um sacrificio a um deus antigo. Seus olhos, naquele momento, nunca pareceram tão negros e infinitos. E eu gritei, gritei porque o amava e estava sendo traída da pior maneira que alguém pode ser.

  Meu pai se jogou sobre mim, antes que eu pudesse me jogar em Felipe e salvá-lo das chamas. Eu não podia... Não podia perdê-lo.

  Mas ele fez com que eu perdesse muito mais. A mim mesma. Meu filho. Meu pai. O amor, a esperança.

  Mas ontem, naquela festa, algo começou a crescer devagar, talvez já estivesse crescendo há meses e eu nunca havia reparado. Mas quando as quatro fêmeas me disseram para tirar as coisas a limpo com Azriel e fiz isso, sendo sincera, algo simplesmente me deu mais esperança.

  Olho para baixo, para aquele lugar que evitei desde que a tatuagem se prendeu na minha pele. Os riscos pretos são grossos, definidos, formando o que parece ser um semi círculo, parecido com um sol, as pontas largas e esparsas. Abraçando meu seio esquerdo. Eu arfo, o vendo pela primeira vez. Já vi em Azriel, mas é diferente quando é em mim. Na minha pele.

  Toco a pele, esperando sentir a dor da pele sensível pela tatuagem. Mas não há nada. Não há relevo. É como se eu tivesse nascido com uma marca de nascença, presa debaixo da pele.

Corte de Sombras e MundosOnde histórias criam vida. Descubra agora