Capítulo único

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    A sensação do ar passando pelo seu corpo e parecendo querer rasgar sua pele era excruciante. A queda não parecia ter fim; ou as pedras lá embaixo aparentavam muito distantes.

    As lágrimas, que saíam dos olhos castanhos, secavam rapidamente. Nada podia ser feito para amparar sua queda. O encontro com o mar era inevitável.

    Fechou os olhos e contemplou o vazio de sua existência. Todos aqueles rostos de conhecidos estranhos preenchiam sua mente, causando-lhe enjoo e uma imensa vontade de gritar.

    Aqueles rostos distorcidos que sorriam de forma grosseira, enquanto julgavam sua vida. Todas aquelas pessoas rudes e sem coração, amarguradas com o mundo, descontando suas frustrações em alguém que não tinha medo de ser diferente deles.

    Então, abruptamente, ela deixou de sentir o vento, e o barulho das ondas revoltas se tornou um murmúrio suave. Estava sentada na beira de um penhasco revestido de grama e lá embaixo podia ver as pedras mergulhadas na água.

    Os olhos encararam o horizonte colorido de azul e laranja. As ondas do oceano estavam calmas e pacientes, esperando o momento de sua ascensão.

    — É lindo, não acha? — ouviu uma voz macia ao seu lado.

    — Acho sim — respondeu e observou a beleza da garota que a acompanhava.

    Seu rosto era tão delicado que parecia angelical. O tom de chocolate amargo de sua pele era tentador e um sorriso acompanhava a boca sedutora. Ela nunca tinha visto alguém tão bonito, apesar de sua intuição lhe dizer que parecia conhecer aquela pessoa.

    — O mar ficou calmo — comentou, distraindo-se da exuberante beleza.

    — Muitas das vezes ele consegue refletir como estamos por dentro.

    — Eu estava caindo — franziu a testa.

    — Não está mais — A garota deixou de sorrir.

    — O que está acontecendo?

    O silêncio dançou por algum tempo no topo do penhasco, até que finalmente foi retirado de cena.

    — Qual sentimento te possuiu? — A garota perguntou, ignorando a pergunta anterior.

    — Do que você está falando? — encarou os olhos dourados.

    — De sentimento — Os olhos dourados a encararam de volta.

    — Isso eu entendi.

    — Então não tem porquê perguntar.

    — Eu não sei meu nome — constatou ao tentar lembrar-se de como foi parar ali.

    — Mas sabe voar — A garota balançava os pés pendurados.

    — Isso não é possível — balançou a cabeça.

    — Só é impossível se você quiser que seja.

    — Quem é você, afinal? — questionou.

    A garota a olhou intensamente, seus lábios curvados em um sorriso travesso.

    — Você se lembra do rosto deles? — Ela perguntou, sabendo do desconforto que causaria.

    As ondas pareciam perturbadas. Ao longe nuvens se formavam, ansiosas para precipitar. As pedras lá embaixo pareciam receptivas.

    — Eles eram maus, por que eu deveria me lembrar? — Seus olhos ardiam em uma mistura de vergonha e rancor.

    — O problema já não é eles, querida — sussurrou carinhosamente.

    — O que quer dizer com isso? — perguntou rispidamente. — A culpa é deles. Eu não preciso me lembrar mais.

    — Qual sentimento te possuiu? — Ela fez a pergunta novamente.

    — Por que ainda está me fazendo essa pergunta? Já não disse que não sei? — A irritação em sua voz era nítida.

    Os olhos dourados voltaram para o horizonte, onde o sol já estava quase totalmente escondido. Tons de azul escuro começaram a tomar conta da aquarela do céu infinito. A pele negra reluzia com um brilho angelical.

    O silêncio tomou seu lugar novamente, rodopiando livre entre elas e sentando-se ali do lado.

    Pensamentos acelerados e sentimentos confusos invadiam a garota de olhos castanhos. Seus cabelos loiros acompanhavam a brisa com revolta. Ela sabia que aqueles rostos estranhos eram os culpados.

    Por que ela tinha que falar sobre aquilo? Já não era passado? Eles ficaram para trás, enquanto ela voava em direção à sua liberdade.

    — Essa vista nos traz uma sensação de liberdade, não é, passarinho? — Seu rosto permanecia inabalado, com uma serenidade perturbadora.

    — Eles me perseguiram — sussurrou.

    — Sim — concordou.

    — Por quê? — questionou com um nó na garganta.

    — Você sabe — encarou com profundidade.

    A garota angelical parecia perscrutar os cantos obscuros da alma. O cheiro da tempestade começava a ficar mais presente. As nuvens, atrevidas, aproximavam-se.

    — Eles me perseguiram — repetiu, franzindo a testa.

    — Sim.

    — Era uma garota de cabelos azuis — encarou uma pedra particularmente mais afiada.

    — Era — Ela continuou concordando, como uma afirmação de estar ouvindo.

    — Eles eram tão cruéis — engoliu em seco. — Por que não podíamos ser felizes como todo mundo?

    A outra ficou calada. Não sabia se ela não queria dizer a resposta ou se realmente não entendia.

    — Eu não queria ter pulado — continuou seu monólogo. — As pessoas não eram boas comigo e eu não tinha muitos motivos para continuar no mundo. Mas... Eu não queria ter pulado. E se eu tivesse lutado mais? E se eu tivesse fugido junto com ela? E se... 

     — Você e seus "e se" — interrompeu. — Isso não te levará a lugar algum. O que fez está feito e o que não fez... Bom, não está feito.

    — Tens razão — suspirou. — Meus "e se" não levam a lugar algum. Eu decidi não lutar, não fugir e, principalmente, decidi pular.

    — Sim.

    Outra vez se viram contemplando a imensidão do oceano e a linha do horizonte tão distante. O mar estava revolto. As ondas rebeldes começavam a querer alcançar os céus e batiam com força nas pedras lá embaixo. O turbilhão marinho refletindo seus sentimentos mais obscuros.

    Os rostos começavam a fazer sentido. Agora eles tinham voz e personalidade. Suas desaprovações e crimes pareciam mais reais. Sua cabeça doía e o coração apertava.

    — Lana — sussurrou e olhou para a pessoa ao seu lado. — Esse é meu nome.

    A outra assentiu e sorriu.

    — Eu pulei porquê quis — continuou. — Não queria mais lidar com aquelas pessoas e não tinha forças para lutar contra todos eles. Joana não quis pular junto comigo.

    — Sim.

    — Eles devem ter alcançado ela depois — deduziu. — Estavam nos perseguindo a poucos metros de distância. Será que nunca aceitariam?

    — Não se preocupe, passarinho — Sua voz transbordava paz. — No futuro haverá espaço para pessoas como você. Agora você precisa ir.

    A garota de cabelos loiros assentiu e lágrimas escorreram pelo seu rosto. Era hora de partir.

    Colocou as mãos contra a grama e impulsionou seu corpo para frente, desprendendo-se da terra.

    O oceano preparou seu abraço aconchegante e ela se deixou confortar pelas ondas.

O abraço do oceanoOnde histórias criam vida. Descubra agora