Por uma fração de segundos, me esqueci de tudo. De como meu coração podia bater tão rápido quanto as asas de um colibri. De como meus braços podiam ter movimentos ou de como minhas pernas ainda podiam chutar. Da pequena adaga que eu mantinha escondida, uma precaução ao andar sozinha nas ruas zemenis. "Use só quando preciso, menina. Isso deve ser o bastante para um bêbado ou dois", disse Koba, um dos sacerdotes remanescentes que ainda cultuavam deuses antigos, servo de Deméter, como se intitulava, quando me entregou a lâmina.
Eu não era uma cartógrafa. Eu não era filha de algum deus. Eu não era órfã. E muito menos uma Grisha como os sangradores afirmaram desde que saímos de Kribirsk. Por alguns sobe e desce dos meus pulmões, eu era só uma menina.
Drusje. Era um farfalhar de folhas mortas no fundo da minha mente. Drusje. Estava mais alto, com raiva. Eu conheço essa palavra. Qual é mesmo? Drusje. Em algum limbo eu podia sentir um aperto forte, me comprimindo para baixo.
— Eu vou te despedaçar, Drusje — dessa vez eu ouvi, eu realmente ouvi.
Drusje. Eu não falava fjerdano, mas não era difícil reconhecer a palavra que eles mais usavam : bruxa.
Quando se cresce em Novyi Zem você tem notícias do mundo todo. Dos experimentos em Shu Han, do lucrativo comércio Kerch, até das novas armas que Fjerda estava fazendo. No meio de tantas informações que chegavam até as ruas, as dos druskelle não passavam despercebidas. O grupo de guerreiros fjerdanos caçava Grishas não só em Ravka, mas na Ilha Errante e em todo mundo, incluindo alguns lugares do continente em que eu e Maly havíamos parado.
Agora eu me lembrava dos fjerdanos que haviam nos emboscado na estrada, de correr pra fora da carruagem, da minha visão escurecendo, a tontura me dominando...
Minhas pálpebras se abriram em um estalar de dedos. O fjerdano corpulento e alto, mil vezes mais forte do que a coisa raquítica que eu era, ainda estava em cima de mim, a enorme faca em suas mãos. Suas íris azuis brilhavam ódio e algo mais. Prazer? Divertimento?
Minhas pernas chutaram. Minhas unhas arranharam com força, tentando cravar-se no tecido grosso da roupa do meu perseguidor e empurrá-lo para longe. Meu grito vibrou, alto e desesperado pelas árvores que nos cercavam na encosta que eu tinha conseguido subir, misturado com os sons dos Grishas lutando com outros druskelle a poucos metros.
— Largue-a — ouvi de onde eu estava.
A lâmina pairou abaixo das minhas costelas, cutucando o vai e vem da minha respiração. O pânico me consumiu por completo. Eu arfava e balançava a cabeça, mas minha boca se abria e não tinha mais forças para gritar. Meus sentidos bagunçando-se cada vez mais.
— Não, demônio das sombras. Vou estripar essa bruxa maldita. Nem você nem Ravka terão mais essa abominação. E não tente negociar comigo. Não cairei em nenhuma mentira, não vou me iludir pensando que o Darkling possa ter alguma misericórdia.
Todo o meu corpo estremeceu com as palavras. O Darkling não teria chance de negociar com o fanático fjerdano. Fechei os olhos, sentindo a faca perfurar a abertura do kefta que tinham me arrumado. Já estava quase orando aos deuses para me receberem, quando ouvi um estalo — um estalo alto e claro. Algo úmido atingiu meu rosto. Úmido e gelado. O gosto metálico invadindo meus lábios entreabertos.
Minhas pálpebras tremeluziram lentamente. Desejei tê-las mantido fechadas. Duas metades perfeitas do corpo estavam bem diante de mim. Minhas mãos correram inutilmente para a boca, nenhum som estava lá para abafar. O Darkling não teve misericórdia.
Eu sabia que deveria estar infinitamente grata por isso, mas no momento só conseguia olhar para o que um dia foi um fjerdano. Náuseas me transpassaram e por um momento tive medo de perder a consciência.
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Where do you belong?
FanfictionAlina Starkov nunca pertenceu à lugar algum. Aos oito anos seu pai misterioso reapareceu em Keramzim e a concedeu um desejo: ir para qualquer lugar que ela quisesse. Junto com o garoto á qual era inseparável, ela sai do orfanato e corre para sobrev...