Não fechei os olhos depois que Gia se arrastou para a própria cama, caindo num sono profundo como se não tivesse acabado de me ameaçar com uma faca. Meu peito subia e descia com força, com minha respiração tão forte que chegava a doer sempre que escapava pela minha boca. Parecia que algo frio e pesado havia sido colocado na boca do meu estômago, porque a sensação ruim me deixava inquieta.
Desliguei minha pulseira quando ela apitou, antes de ouvir as das outras fazer o mesmo. Gia e Thalia se arrumaram para o treinamento, enquanto eu estava virada para a parede fingindo dormir. Laís se arrumou logo que elas saíram, cantarolando baixinho como se gostasse tanto daquela rotina. Foi inevitável não fechar os olhos quando ela subiu as escadas que davam para minha cama e me cutucou.
—Hannah, treinamento, agora! —Resmungou, soltando um bochecho, antes de descer da cama e prender seus cabelos loiros naquele rabo de cavalo alto. —Eu não posso ficar acordando você todo dia. Então precisa fazer isso sozinha, ou da próxima vez vou deixar você perder o horário e receber um puxão de orelha de Cold por isso.
—Não estou me sentindo bem. —Menti, fazendo-a ficar em silêncio por um momento, parada no meio do quarto. —Acho que foi a mudança de rotina. A comida diferente. Não sei. Só... pode avisar a Cold que não estou me sentindo bem parar treinar hoje?
—Quer que eu chame um médico? —Indagou, me fazendo fechar os olhos com força, apertando-os até senti-los doer. Não gostei de mentir pra ela, apesar de nem nos conhecermos. Mas Laís foi legal comigo desde o início e levando em consideração tudo que aconteceu durante a noite, acho que eu deveria mesmo valorizar atitudes como a dela.
—Não, tudo bem. Só preciso descansar. Não dormi muito bem essa noite. —Afirmei, escutando ela soltar um suspiro quase inaudível, antes da porta abrir e se fechar. Olhei por cima do ombro, agradecendo mentalmente quando vi que estava finalmente sozinha. Me encolhi sobre a cama, abraçando meus joelhos. Não voltei a dormir, mas também não sai daquela posição pelo restante da manhã.
Sai para almoçar quando o horário já havia passado, quando eu esperava encontrar o refeitório vazia. Havia poucos soldados lá, conversando baixo e alguns até mesmo lendo, o que me pegou de surpresa. O almoço já havia sido retirado, mas consegui uma maçã com uma das cozinheiras, que me lançou um olhar duro por eu ter chegado fora do horário. De qualquer forma, voltei correndo para o quarto, devorando a maçã em segundos antes de me esconder embaixo das cobertas de novo.
Minha pulseira vibrou durante a tarde, com o aviso de que eu deveria ir treinar. Mexi nela até o aviso sumir, sentindo um nó se formar na minha garganta quando lembrei da sensação do corpo de Gia sobre o meu, me paralisando por completo com aquela faca pressionando meu pescoço. Laís me disse para rebater, mas quando eu fiz isso, tudo ficou pior. Talvez se eu tivesse apenas ficado quieta, Gia não teria se sentido ameaçada ou o que quer que fosse.
Puxei meu braço até deixar a pulseira perto do meu rosto, mexendo na tela até encontrar minhas informações pessoais. Meu local havia sido atualizado para a Zona Militar. Havia um aviso em vermelho ao lado do meu nome, escrito "Em observação!", que eu sabia muito bem o motivo de estar ali. Não me importei com isso quando cliquei no nome da minha mãe, vendo sua foto aparecer na tela, assim como suas informações, atualizadas com o aviso do seu falecimento.
Meu coração se apertou na mesma hora, enquanto meus olhos se enchiam de lágrimas, com o desejo de que tudo aquilo não passasse de um sonho ruim, em que eu logo iria acordar na minha cama do setor 2, pronta para ir trabalhar em meio a terra. Fechei meus olhos com força, antes de abri-los e encarar aquele dormitório de novo, me sentindo prestes a partir ao meio quando percebi que não sabia lidar com tudo aquilo. Que não ia conseguir sem Ethan.
Não tive problemas com Gia ou Thalia na noite seguinte, apesar de ter ficado a noite inteira praticamente acordada, com medo de acordar com uma faca na minha garganta de novo, ou algo muito pior. Laís questionou se eu estava bem antes de ir dormir, lançando um olhar atravessado para nossas colegas de quarto quando elas sussurram baixo e riram, provavelmente falando sobre mim.
Me senti uma covarde por não fazer nada sobre aquilo e me senti pior ainda quando sai cedo para o refeitório, tomando café antes de todo mundo, antes de voltar para o dormitório quando tiver certeza que as três não estariam mais lá. Quando minha pulseira apitou de novo, a tirei e me tranquei no banheiro, ficando tempo demais embaixo do chuveiro, a ponto dos meus dedos parecerem uvas passas quando sai.
Talvez Cold tivesse aparecido ali mais cedo para me buscar e provavelmente estava muito irritado por perceber que eu estava fugindo do treinamento. Ou melhor, fugindo dele. Mas ele não tentou me encontrar durante a tarde, assim como minha pulseira ficou silenciosa o restante do dia, enquanto eu ficava trancada no dormitório encarando a parede. Eu não cansava de repetir a palavra covarde na minha cabeça. Porque era isso que eu era. Uma grande covarde de merda.
[...]
Soltei um grito, acordando no susto quando água e gelo foram jogados sobre meu rosto, ensopando tanto meu corpo quanto minha cama. Meus lábios se comprimiram quando me arrastei para a parede, passando a mão sobre os olhos antes de encontrar Laís de pé sobre as escadas que davam para a minha cama, segurando o balde vazio.
—Qual o seu problema? —Praticamente rosnei, me encolhendo contra o arrepio de frio, enquanto a via estalar a língua e jogar o balde no chão, antes de descer as escadas, me dando a visão de Cold parado na entrada do dormitório. Engoli em seco, sabendo que estava ferrada quando o vi contrair a mandíbula, com a expressão mais irritada do que eu jamais havia visto.
—Você tem 5 minutos pra se arrumar e me encontrar no corredor. —Sibilou, com os olhos faiscando na minha direção, me fazendo estremecer dos pés a cabeça. —Não ouse se atrasar um minuto sequer.
Ele saiu do quarto, batendo a porta com força, levando Laís junto com ele. Saltei da cama na mesma hora, com o coração martelando dentro do peito enquanto corria para o armário e pegava minhas roupas para me trocar. Havia saído cedo para o refeitório de novo, esperando Laís e as outras sairem para poder voltar para o dormitório. Só não estava esperando Cold aparecer aqui, tão furioso.
Me arrumei o mais rápido que conseguia, ignorando meus cabelos molhados pelo banho frio que Laís literalmente me fez tomar, que agora pareciam um ninho de rato. Eu provavelmente merecia aquilo, apesar de que não era inteiramente culpa minha, minha colega de dormitório ter resolvido ameaçar cortar minha garganta.
Cold estava me esperando no corredor quando sai, vendo-o checar o horário na pulseira, para ter certeza que eu não havia me atrasado.—Eu...
—Você me deixou esperando dois dias seguidos, enquanto ficava entocado no dormitório fazendo sabe-se lá o que. —Ele comprimiu os lábios, a expressão do rosto dura e impenetrável. —O que acha que vai ganhar evitando o treinamento? Acha que assim vão mandá-la de volta para o setor 2? Ou pensou que poderia continuar vivendo desse jeito por várias semanas, evitando até mesmo comer alguma coisa decente? —Abaixei meu rosto, sem saber se estava incomodada com o fato de ele estar falando daquele jeito comigo, ou constrangida por ser uma covarde tão grande. —Olhe pra mim quando eu falo com você, Hawking.
Ergui a cabeça, mordendo a língua com força até eu sentir gosto de sangue. Cold estava me encarando com os olhos verdes praticamente em chamas, como se estivesse tão furioso comigo. Eu merecia. Eu sabia que eu merecia. Eu estava pronta pra tentar me esconder mais um dia no dormitório, porque não sabia lidar com nada disso.
—Eu sinto muito. —Falei, sem desviar os olhos dos dele, mesmo que tivesse certeza de que iria me desmanchar a qualquer momento com a forma que ele me encarava, que fazia meu estômago dar um nó. Cold soltou um suspiro pesado, me olhando por um segundo interminável antes de desviar os olhos e indicar que eu o seguisse.
—Vou levar você na cerca de contenção. —Afirmou, me pegando de surpresa, enquanto eu acelerava o passo para acompanhá-lo, já que ele estava andando praticamente correndo. —Acho que você precisa entender como as coisas funcionam por aqui, ou não vai durar até o final da semana.
Continua...
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Em Destruição
Fiksi UmumO mundo sucumbiu as guerras e os países se tornaram ruínas. Agora, décadas depois, as pessoas precisam viver em zonas de contenção no subsolo, impedidas de ir além dos muros que cercam o complexo em que vivem. Cada um tem um papel crucial nessa nova...