Florescendo: Capítulo 3
Na noite do dia dezoito de abril, Clara estava lavando a geladeira enquanto Leo se deitava no sofá, com o celular na mão e os fones no ouvido. Leo percebeu a movimentação e se virou para olhar. Tirou os fones do ouvido, largou o celular e foi até sua mãe.
- Quer que eu faça isso?
Clara respondeu com um misto de hostilidade e apatia.
- Não. Você tinha que ter feito isso antes de eu começar a lavar a geladeira.
Leo sentiu vontade de abaixar os olhos, mas não o fez. Continuava olhando Clara, que limpava a geladeira. Com olhos tristes mas resolutos, pensou: "eu vou mudar isso."#-#-#-#-#-#-#-#-#-#-#-#-#-#-#-#-#-#
Desde a resolução de Leo em partir, um mês se passou. Quase não foi. Às vezes pensava que isso que estava fazendo era loucura, que ele iria acabar morando debaixo de uma ponte e implorando para voltar para casa, onde teria um teto e comida. Pensou que não iria conseguir. Às vezes, pensava também na sua mãe. Ela iria sofrer, ia ficar com raiva. E ele, egoísta, estaria por aí preocupado só consigo mesmo. Talvez não devesse fazer isso. Mas algumas vezes sua mãe falava alguma coisa que atingia fundo em Leo. Doía. E então ele se lembrava de que não podia ficar ali, esperando ou dizendo a si mesmo que estava reunindo coragem. Se não partisse, ele mesmo nunca acreditaria que estava disposto a fazer as coisas mudarem. A ser mais feliz e, quem sabe, fazer Clara mais feliz também.
Em alguns momentos, Leo também sentia raiva. Porquê é que tinha que ficar ouvindo aquelas coisas que Clara falava? Porquê ela era assim? Podia ir embora para sempre. Mas ela também tem os problemas dela, pensava. Por isso era assim. Leo se colocou no lugar dela. Se tivesse um filho covarde, trabalhasse para pessoas que o desprezavam e tivesse que andar horas de ônibus todos os dias, também não seria tão paciente. Esquece isso, eu tenho que voltar, pensava. Voltaria quando pudesse caminhar com as próprias pernas, sempre em frente. E então poderia talvez ajudar Clara também, ao invés de obrigar ela a arrastá-lo. Ela não merecia isso, e ele não queria morrer sem ter vivido. Por isso precisava ir.
Eram duas horas da tarde, dia 19 de maio. Leo estava com as malas prontas e uma passagem num ônibus clandestino comprada. Sua mãe estava trabalhando. Tudo pronto. De mochila nas costas, montado na bicicleta, olhou para trás. Para sua casa. Não sabia quando iria ver ela de novo. Não sabia para onde iria. Se sentiu sozinho e dolorido. Começou a pedalar até a casa de José.#-#-#-#-#-#-#-#-#-#-#-#-#-#-#-#-#-#
Josué estava em casa, em um dia comum. Estava conversando com a avó, Joana, sobre uma notícia que tinham visto na TV. Então, naquele dia convidativo de sol, escutou uma bicicleta e em seguida a campainha. Joana disse, já forçando suas pernas cansadas para se levantar:
- Eu atendo.
- Não precisa.
- Obrigada, Josué.
E Josué foi até o portão, e se surpreendeu:
- Leo? Porquê você veio sem avisar? Aliás, pra onde você vai?
Seu amigo respirou fundo e então suspirou de forma preguiçosa.
- Vamos do outro lado da rua.
Josué se sentia confuso. E com um pouco de medo, não sabia porquê. O clima estava diferente. Porquê aquela mochila de viagem nas costas?
- Tá.
Já do outro lado da rua, perguntou:
- Então?
Leo olhava para o asfalto quente e para as crianças jogando bola. Para Josué, Leo parecia um pouco triste.
- Eu vou embora.
Josué não entendeu. Quando entendeu, ficou confuso. As perguntas o tomaram de assalto, não sabia nem o que dizer primeiro. Juntou as sobrancelhas, confuso. Estava entalado de tanta dúvida. Conseguiu dizer:
- Como assim? Pra onde?
Leo engoliu.
- É... complicado. Eu não posso te dizer pra onde eu vou, mas eu vou voltar.
Josué começava a se desesperar.
- Porquê não pode?
- Porquê minha mãe vai perguntar pra você, quando descobrir que eu não tô em casa. Não quero te pedir pra guardar segredo, pra você não se sentir mal por mentir pra minha mãe.
- Leo, você não pode estar falando sério.
- Eu tô falando sério. Você não acredita em mim?
E Josué se sentia puxado por forças opostas, esmagado, jogado. Estava diante de uma situação desesperadora como nunca antes tinha presenciado. Podia estar perdendo o seu melhor amigo para sempre. E se ele não voltasse? Não sabia o que fazer. Acreditar em Leo e aceitar a partida? Contar para alguém e pedir ajuda? Tentar convencê-lo a ficar? E olhou novamente para Leo. Não era brincadeira ou muito menos simples rebeldia. Não conseguiria convencê-lo a ficar. Então, o que fazer?
- Você vai mesmo.
Para Josué, o mundo parecia silenciar.
- É.
Leo parecia não saber o que dizer. Josué disse:
- Já que é assim, quero só saber porquê. Não quero ver você arrependido e pra baixo depois.
O semblante de Leo suavizou um pouco. Leo disse, sem raiva e ainda olhando o céu, as crianças, o asfalto:
- Eu não posso ficar aqui assim. Sendo pisado. Eu... não valho nada agora. Não valho a comida que eu como. Por isso, eu preciso ir. Quando eu merecer tudo isso que eu tenho, eu volto. Quando eu merecer o respeito da minha mãe, eu volto. E quando eu tiver coragem de viver.
Josué calou, e se acalmou.
- Você não pode só falar com ela?
- Minha palavra não vale muita coisa. Nem pra mim. Então eu tenho que usar ação.
Josué se lembrou de quando Leo brigou com um outro amigo seu, Jonathan, em uma festa de aniversário, quando os dois tinham oito anos. Jonathan estava explicando para Leo como funcionava o chafariz da sua casa. Jonathan era de família mais abastada. Leo tinha visto o chafariz e o achado muito bonito. Naquele dia, perguntou:
- Que legal! Como é que a água vai lá pra cima?!
Jonathan disse, sem insinuar nada com o seu tom:
- Antes, você sabe o que é "hidráulico"?
Leo de repente tirou seu sorriso animado da cara e olhou indignado para Jonathan:
- É claro que eu sei. Você acha que eu sou burro, é isso?
Jonathan também era uma criança, e se irritou com a indagação. A partir daí, os dois brigaram, gritaram e se bateram até as respectivas mães os afastarem um do outro. Leo odiava ser subestimado, desde sempre. Necessidade de superar expectativas? De se auto afirmar? Consequência de uma possível mentalidade arrogante? Josué nunca conseguiu entender isso, pois sua natureza era mais pacífica. Hoje em dia, sabia que Leo se irritava quando alguém o subestimava, mas não mostrava. Talvez achasse que estava se incomodando porquê ouvia a verdade, a doída verdade. E então aceitava e se calava. Essa memória passou por Josué, que subitamente pôde compreender os motivos de Leo. Ele precisava se sentir digno de viver. Perguntou, carregado de muitas emoções que haviam surgido em seu peito durante a despedida, quase chorando:
- Você vai sozinho?
E Leo arqueou as sobrancelhas. "Ele não esperava essa?", Josué pensou. Leo também estava quase chorando:
- Você... não. Você não pode vir comigo. Você quer ficar aqui, com sua avó e todo mundo, né?
Josué se sentiu contra a parede.
- Não precisa ter vergonha. Essa é uma coisa minha. Não vou te arrastar nessa. Mas...
E Leo fez uma coisa que não fazia com muita frequência. Abraçou Josué, enquanto dizia, chorando:
- Porra, você pensou mesmo em vir comigo. Porra...
E soltou, com os beiços tremendo:
- Obrigado.
Josué não conseguia pensar. Abraçou Leo de volta e só chorava, junto com ele. Leo disse chorando, com a intenção de fazer Josué se sentir mais calmo:
- Sabe, eu vou embora bem feliz. Porquê você quis vir comigo. Eu vou, mesmo. Tchau.
E Leo se desprendeu dos braços de Josué, que estava atônito. Subiu na bicicleta, olhou pra trás e disse:
- Eu vou voltar, é verdade.
E pedalou, pedalou, sumiu numa subida ao longe.
Josué correu até um campinho próximo, que estava vazio. Lá, ainda chorando descontrolado, sem saber o que fazer, se deitou na grama. Um pedaço seu tinha ido embora. Sem Leo, ele não podia ser ele. Mas Leo disse que voltaria.
- Ele vai voltar.
Nesse ponto, o mundo de Josué não mais silenciava em respeito a perda de Leo. Os sons voltavam, aos poucos, a realidade parecia novamente retomar seu ritmo, mas Leo não estava mais com Josué. Ele não sabia se queria que Leo desistisse e voltasse ou se queria que ele conseguisse o que queria. Apesar de triste e se sentindo sozinho, decidiu que não seria um bom amigo se desejasse que Leo desistisse.
- Ele vai conseguir.
Agora precisava se acalmar e fingir que não sabia de nada. Precisava fazer parecer que Leo sumiu sem dizer nada para ele. Repetiu:
- Ele vai conseguir.
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Florescendo
RomanceLeo é um jovem de 16 anos que vive com sua mãe Clara em São Paulo e que sofre por ter medo de viver, por deixar as chances passarem. Depois de uma briga com Clara, Leo decide que vai fugir de casa para crescer como pessoa e realizar seu sonho: ser d...