A vida na aldeia de Trivian era difícil. Os elfos trabalhavam e recebiam o mínimo no dia, ou às vezes nem recebia. As crianças com 7 anos já eram obrigadas a trabalharem aos seus senhores, e ninguém podia reclamar. Famílias e felicidade não existiam juntas, e sim o propósito de chegar ao final do dia e sobreviver.
Eu estava cansada daquilo. Em meio a tanta confusão, queria dar um jeito, fazer aquelas pessoas sorrirem, mudar o destino delas.
Eu, Astrid, me sento todo o dia na sombra da Árvore Mãe de Trivian, que todos do vilarejo dizem ser mágica. Pra mim apenas a sombra dela já é, pois me deixava tranquila após um longo e cansado dia caçando.
Caçar. Era o meu trabalho desde os 7 anos de idade. Todos contavam comigo e meu grupo ao final do dia. Sem caça, morreríamos de fome.
- Deixa de ser molenga, Anna. É só um javali!
A voz de Garrett veio à tona, acompanhado de Anna e o resto do grupo de caça.
Garrett era meu irmão mais velho, ele sempre gostava de me lembrar disso, aliás. Em casa era apenas nós dois. - nossos pais, porém, morreram na guerra, tentando proteger nossa família. Eu era muito pequena, mas Garrett diz que eles eram amáveis e todos o respeitavam.
- Não é apenas um javali. Você por acaso sabia se ele era pai de família? - Anna resmungou apontando para a cara do meu irmão. - Mas é claro que ninguém se importa com isso.
- Você precisa parar de pensar nisso. Se quer entrar para o grupo de caça, é isso que vai ter que fazer todos os dias.
Os dois sentaram ao meu lado sem olhar para mim e continuaram discutindo.
- Eu nunca quis entrar! Ou era isso, ou eu precisaria dizer tchau ao vilarejo. Não tive escolha. - ela exclamou cruzando os braços.
- Astrid, diz à Anna que ela precisa deixar de lado esse pensamento sobre os animais. - Garrett finalmente virou para mim me cutucando.
O grupo nos alcançou e ficaram parados ao nosso redor. - uns conversando sobre o que houve no dia, outros traziam as caças nas costas e jogaram no chão, cansados.
Calen, o líder do grupo, deixou seu arco no chão e juntou as mãos.
- Bom trabalho hoje, pessoal. Anna, Garrett e Astrid, não quero mais saber de atrasos, ouviram? Quero vocês amanhã aqui bem cedo. Nada de imprevistos. - ele olhou ao redor para as pessoas exaustas - tenham uma boa noite.
Calen saiu acompanhado de duas pessoas, deixando os demais ali, olhando para nós três com olhares julgadores.
- Tudo culpa sua... - escutei Garrett cochicar para Anna. - você não queria ir por causa dessas ideias malucas e acabou atrasando eu e Astrid!
Anna levantou desacreditada e pegou seu arco do chão.
- Você... É o elfo mais idiota que já conheci, ouviu? Não sei como Astrid é sua irmã!
Garrett abriu a boca para dizer algo, mas desistiu.
- Te encontro em casa, mana. - disse sem olhar para mim e saiu.
As pessoas que estavam ali que tinham assistido a quase briga saíram também, deixando eu e Anna sozinhas.
Quando olhei para o céu, percebi que já estava escurecendo. Soltei um suspiro ao pensar que havia se passado mais um dia, e nada havia mudado.
- Me desculpe, Astrid...
Olhei confusa para Anna e me surpreendi com seu rosto - estava em lágrimas -.
- É tudo tão difícil. Não sei como as pessoas conseguem aceitar isso. A gente trabalha pra chegar no final e eles virem pegar tudo. - ela pegou sua caça e jogou nas costas, o que a fez cambalear para trás, mas ela pareceu não ligar muito. - Está olhando o quê? Vamos voltar e entregar logo isso.
Pisquei duas vezes e comecei a acompanhá-la.
Anna era minha única amiga do vilarejo. A gente se conhecia desde pequenas e nunca nos separamos. Era a elfa mais fofa e sentimental que eu conhecia. - seus cabelos eram curtos e bem aparados, da cor do mel. E seus olhos mais azuis do que o céu.
Seu maior passatempo era brigar com meu irmão, os dois sempre arrumavam algum assunto a qual não concordavam para discutir. Eu já tinha até me acostumado, apesar de as vezes dizer que eles foram feitos um para o outro.
- Como será o mundo lá fora, Astrid? - Anna perguntou depois de atravessamos o rio principal.
Olhei para ela confusa.
- Eu digo no Palácio. - tentou explicar. - deve ser tão diferente daqui, não é? E o príncipe, dizem que é muito lindo e simpático. Já pensou conhecê-lo de perto?
- O príncipe eu não sei. Mas a cidade central deve ser muito grande e cheia de elfos andando pra lá e pra cá. - meus olhos brilharam.
- Estão atrasadas!
Eu e Anna pulamos no susto. Mal tínhamos percebido que já tínhamos chegado ao vilarejo e estávamos em frente o gigante e carrancudo Greg, o responsável por distribuir a caça do dia.
- Desculpe, Astrid e eu nos perdemos e acabamos...
- Basta, basta. - ele cortou Anna com um gesto. - Agora saiam daqui.
Não precisou falar duas vezes. Assim que ele pegou, demos meia volta e começamos a caminhar por entre os comerciantes, que já estavam fechando seus negócios devido ao horário.
Anna foi o caminho todo falando sobre o príncipe e a família real. Sua obsessão era tanta que ela não parava de tagarelar.
Passamos entre as casas nas árvores e finalmente chegamos à minha. Me despedi dela e entrei, sem pensar duas vezes.
O recanto meu e de Garrett era simples e prático. Logo na entrada havia uma folhagem que cobria as paredes, e uma mesa de canto onde ficava um retrato nosso com nossos pais. - sempre que chegava, eu dava um sorriso ao vê-lo.
Logo depois da entrada havia um corredor pequeno e estreito que dava para nossa cozinha/sala e logo à frente o quarto.
A arquitetura era tudo de madeira e velas iluminavam o interior.
Assim que entrei na sala, me deparei com Garrett deitado no nosso pequeno estofado, parecendo estar exausto. Quando me viu, sentou e suspirou.
- Longo dia?
- Longo dia. - respondi ao sentar do seu lado.
- Você é meu orgulho diário, Astrid. Nunca se esqueça disso. - e me abraçou.
- Eu sei. - recebi o abraço e sorri. - Mas sabe o que eu estava pensando? Acho que descobri um jeito de mudar nossas vidas pra sempre.
Ele me olhou e levantou uma sobrancelha.
- Você. O príncipe. O que acha? - perguntei o cutucando.
- Ah, vem aqui!
Como duas crianças, começamos a correr até ele me alcançar e me encher de cócegas. Mas a brincadeira acabou depois da grande e barulhenta explosão que ouvimos.
- Mas o que... - Garrett me soltou e espiou pela porta. Fui atrás dele e me acomodei embaixo de seu braço para acompanhar.
Chamas.
Foi o que nossos olhos viram. Chamas para todo o lado, pessoas correndo e crianças chorando. Uma gritaria atordoou meus ouvidos e Garrett fechou a porta.
- Ok, Astrid. - ele apoiou no meu ombro. - Fique aqui e não saia. Por nada, ouviu?
- O que...? - engoli em seco. - Não. Aonde você vai?
Meu irmão me despachou da porta e abriu novamente.
- Eu vou ver o que está acontecendo. Você tem que me prometer que vai ficar aqui, segura.
- Não! - segurei seu braço. - Não vai, Garrett, por favor...
- Me prome...
Com um estalar de dedos, alguém entrou com tudo e quebrou a porta. Ela quebrou em duas partes caindo em cima do meu irmão. Eu por outro lado fui jogava com tudo no outro canto da sala.
Com muita dificuldade, levantei a cabeça para olhar. - um homem alto, robusto e forte estava olhando para mim segurando um grande machado. Ele começou a vir na minha direção, levantando sua arma, mas foi surpreendido com Garrett pulando em cima de suas costas com uma tentativa de pará-lo.
- Corre, Astrid! - ele ordenou. - Fuja!
- Mas e você? - berrei, olhando para todos os lados tentando achar algo útil para ajudá-lo.
Em exatos dois segundos, o homem pegou com muita facilidade meu irmão e o jogou para trás. Gritei seu nome, mas ele estava desacordado.
- Moleque tolo! - ele vociferou e começou a caminhar na minha direção, quebrando tudo o que via pela frente.
Sem olhar para trás, comecei a correr e fechei a porta do quarto, colocando uma cadeira para me dar alguns segundos a mais.
Olhei para os lados, desesperada e sem fôlego. Arranquei com tudo o ferro que sustentava nossa beliche e quebrei a forte madeira que entrelaçava a janela. A porta escancarou e o homem entrou, resmungando.
- Não adianta fugir, menina. Você vem conosco!
Sem pestanejar, saltei para fora e comecei a correr, dando a volta pela casa e entrando na sala novamente, onde meu irmão estava desacordado. Corri até ele e o entrelacei em meu ombro.
- Vamos. Acorda... - pedi olhando para os lados, escutando se o homem com o machado não voltava. Por sorte não tinha me visto entrar na casa.
- Astrid... - ele enfim abriu o olho. - Fuja. Acho que quebrei uma perna.
Sua testa sangrava. Ele mal conseguia ficar consciente.
- Não. Você vem comigo. - ajudei-o a se levantar e com passos muito lentos chegamos à porta.
As chamas ainda subiam por entre as árvores. Algumas pessoas corriam desesperadas e outras estavam no chão. Não queria acreditar que tinha acontecido algo pior.
Comecei a conduzir meu irmão até um canteiro e nos abaixamos.
- Astrid... Não consigo...
Virei para ele e ele estava lentamente fechando os olhos.
- Droga, Garrett. - sussurrei e arranquei um pedaço de pano da minha manga e amarrei forte em sua perna. - Eu estou aqui. Você vai ficar bem, só tem que se manter consciente.
Deitei sua cabeça lentamente no meu colo e dei leves batidas em seu rosto para mantê-lo acordado. Mas ele fechou os olhos.
- Não, não, não, não! - dei mais batidas. - Acorda, por favor!
- Astrid.
Naquele momento meu subconsciente foi além e em um segundo tinha pegado uma pedra que estava no chão para atacar quem estava ali, mas a voz me acalmou.
- Relaxa, sou eu! - Anna fez reverência com a mão.
- Anna! - exclamei, mas me arrependi na hora de ter exaltado a voz. - O que está acontecendo?
- Greg me disse que são os oficiais de Godrycs. Querem pegar as crianças para servir no lugar de pagar as dívidas.
- Dívidas? - perguntei ofegante. - Do que você está falando?
- Dívidas antigas que o antigo ancião fez. Dizem que ele apostou as crianças se não conseguisse pagar. - ela abaixou os olhos para meu irmão desacordado. - Você precisa fugir, Astrid. Eles querem pegar as de 7 até 17 anos. Isso inclui todos nós.
- Por isso que o valentão não quis pegar meu irmão. Só eu... - pensei alto.
- Garrett já tem 19, não é? - Anna perguntou e olhou para os lados após eu ter afirmado. - Escuta, Greg tem um barco esperando no porto com a família dele e mais algumas crianças que agora estão órfãs. Ele disse que nós podíamos ir com ele, então vim buscar vocês.
- Mas e o resto? Eles vão todos morrer se não fizermos nada... - disse tentando não levantar a voz.
- Não podemos fazer nada, Astrid. - ela respondeu desapontada. - Vamos.
Ao passar correndo por entre as árvores sem sermos vistos, minha vida pareceu um grande tornado, sendo passado diante dos meus olhos. Minha aldeia, toda destruída e as pessoas... Mortas.
A noite foi muito longa. Mal dormi e fiquei de olhos bem abertos sobre meu irmão. - ele ainda estava desacordado, sem nem dar um sinal sequer.
Estávamos no barco ainda, todos nem dizer uma palavra. Olhei para eles e de volta para meu irmão. Aquilo me fez ficar furiosa e mal percebi quando fiquei de pé no barco. Todos me olharam.
- A gente vai ficar sem fazer nada mesmo? Nossas crianças foram levadas, nosso vilarejo destruído, e vai ficar por assim mesmo?
- Astrid... - Anna tentou me conduzir a me abaixar.
- Não estamos muito longe. Podemos voltar e lutar. Temos que fazer isso! - exclamei para todos, mas eles simplesmente viraram as caras. Aquilo me deixou mais furiosa ainda. - Anna, cuida do meu irmão, por favor? E quando ele acordar, não deixe vir atrás de mim. E diga que eu o amo.
- O que... Aonde você vai? - ela arregalou os olhos.
- Vou fazer o que devia ter feito há muito tempo.
Avistei uma costeira à margem do rio e pulei do barco, fazendo todos murmurarem entre si, e Anna não entendendo nada.
Nadei até a costa. Ao chegar, cobri minha cabeça com a touca da minha capa e comecei a caminhar, determinada porém sem rumo, à cidade principal.
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Rainha Élfica
FantasiNo mundo élfico de Anankyn, onde a magia é a principal fonte de poder dos seres, Astrid, uma elfa determinada porém sem rumo, vive em uma aldeia humilde. Completamente sem destino, Astrid parte para a grande cidade em busca de aprender magia para se...