Havia mais e mais gente entrando na Pocilga, que antes era chamada Buraco, e antes ainda foi outra coisa; não era importante, não mais. Com a abolição da corrida conta o tempo, e o novo marcador de idade e a nova contagem Rotacional, desbagulhamos os bagulhados por nós tão bagulhados, e apenas curtimos cada Rotacional e a recepção dos marcadores de idade, agora renovados de cinquenta em cinquenta rotacionais.
A Pocilga usa um sistema novo de filtragem do sol, e a luz violeta foi substituída pela ultra-violeta, meio que na mesma época que Mar saiu do mercado com o surgimento da Oceano, muito melhor, na minha opinião. A Oceano está no mercado tem duas Rotacionais, e já vendeu mais que todo o período em que a Líquido circulou, me disseram. Quem disse primeiro não vem ao caso, mas agora é consenso então é verdade.
Haviam os que brilhavam por conta na ultra-violeta, pelo número de rotacionais que tinham; os com menos, para não ficarem para trás, passavam as colorações no corpo e cabelos, e sempre usamos as mesmas até efetivamente termos rotacionais o bastante para não precisarmos delas.
O barulho que tocou ontem não é o mesmo de hoje, e suponho ser um novo gênero de barulho; gosto mais desse que do anterior, tanto quanto gosto mais da Oceano do que gostava da Mar: sempre gostamos mais do barato-novo, afinal; penso mais um segundo, e então insiro a Oceano no meu marcador de idade mais recente, e sinto o novo-barato quase imediatamente. Sob o meu visor atenuador de ultra-violeta, tenho o primeiro alvo de Amor da noite, e o alvo parece sentir o mesmo já que caminha em minha direção pulando e dançando como eu ao som desse barulho novo; nós temos um momento ou alguns, e então morre o Amor que sentia por ele, porque vejo o próximo alvo logo atrás de seu ombro, e assim segue até eu ter que inserir mais Oceano no meu marcador, o que é uma bagulhagem ainda não-resolvida e irritante. Tento lembrar porque não há Oceano desbagulhado, mas ela já fez efeito e volto para a Pocilga e aos alvos. Todo núcleo habitável tem uma versão da Pocilga, mas seus nomes variam com a Variante-padrão Regional, para evitar confusão. Ao menos foi o que me disseram.
Sigo na Pocilga mais um tempo, mas a babulhagem do fim do barato-novo acontece de novo, e procuro nos meus bolsos por mais Oceano, sem sucesso. É sempre chato quando acaba a Oceano, mas perto de toda Pocilga tem uma Distribuidora para suprir essa necessidade, só precisamos colocar a digital para descontarem dos créditos; é mais fácil assim, já que os núcleos habitáveis são setorizados, e o índice de furtos é menor nessa composição. Moro num bom núcleo, mas sempre ficamos atentos na virada entre Lunar e Solar; Penumbra não é confiável, nunca será.
A Distribuidora mostra quantos Oceanos estão disponíveis, e o mostrador marcava zero. Ali estava ela, na caminhante fora da Pocilga, onde o barulho estava abafado e havia se tornado irritante, e não tinha nenhuma Oceano disponível ali. Nunca tinha visto isso acontecer, então supus que era um erro no mostrador, ou coisa assim, e coloquei minha digital na leitora: nada, além do recado de indisponibilidade. A respiração travou, e o des-barato começou a se aproximar, tocando as beiradas. Isso não era normal, não era possível.
Desde que a Líquido chegou ao mercado, nunca estivemos sem um barato, porquê o não-barato é tão perigoso quanto o excesso de barato. Mas ali estava a prova de quealgo estava fora do lugar, e a respiração acelerou sem meu comando. Aquilo era assustador, problemático.
Tentei dar uma batida, uma chacoalhada. Nada. Tentei um choque na lateral, meu marcador temporal incomodando na pele. Nada do mostrador mostrar que o zero foi um erro.
O não-barato se abateu sobre mim, meu marcador coçando e doendo. Escorreguei pela lateral, e senti algo estranho que não sentia tinha muito tempo: fadiga. E foi bizarro, estranho, doloroso. A não-brisa já levou alguns para lugares profundos, desconhecidos, terríveis. Eles nunca mais voltaram pela nossa segurança, mas ali estava a Distribuidora, e seu perigoso zero, e a eminencia da Solidez. Olhei para a frente, a sensação esmagadora do sólido na minha mente começando a se formar. Ali, na caminhante que passo todos os solares, na quase penumbra, havia uma rachadura e uma coisa saindo de dentro dela: era uma coisícula, tímida, mas viva e fresca como nada que via há muitas rotacionais.
Brotava do nada, do sólido da caminhante, sem motivo ou ordem. Não era possível que ainda existissem, porque em algum momento da guerra contra o tempo elas haviam sumido, junto com as coisas que não importam. O sólido se firmou na minha mente, e o perigo doloroso da minha marca doendo me deram força para lembrar algo mais perigoso ainda, e me arrependi de lembrar porque aquilo devia ser uma coisa que não importa, mas...mas importou um dia, e o passado é uma fraqueza.
Aquilo não havia sido incluso na Regra Padrão Regional, porque não é presente e nem eterno, mas lembrei seu nome de antes disso: flor. Haviam vários tipos, no antes, mas não lembro delas, de sua aparência, então aquela era A flor, e pronto. A flor era pequena, com as flores brancas e o centro amarelo, o caule verde e novo. A marca temporal ardia como o inferno, mas não importava, porque lembrei que me esqueci coisas que importavam, e o sólido pareceu me rachar e fragmentar com o peso de lembrar.
Houve um tempo em que havia existido o tempo sem guerra contra, porque não sabiam como. Haviam mini-humanos, que cresciam, envelheciam e partiam, e ao partirem iam para sob a terra, e levávamos flores para eles. Eu já fui uma dessas miniaturas, e gostava de dar essas flores para humanos maiores; eu fui uma miniatura, e tive nome; fui uma miniatura que viveu o Amor, mas ele era sólido e único, intrasferível porque não se amava duas pessoas de forma igual, mesmo que tentássemos.
Toque as pétalas da flor, a sensação aveludada e delicada, mas firme e sólida. Olhei ao redor, e reconheci aquele núcleo habitável, porque é onde habito hoje, mas também é onde costumava morar quando miniatura, quando haviam coisas que hoje são impensáveis de existir, porque eram sólidas e ruíram há muito. Ao menos, a maioria delas.
Me senti firme, o sólido que nem lembrava existir martelava para eu levantar, a temporal nova e as antigas ferroando a pele. Já estava tudo ferrado mesmo, eu estava no lugar profundo afinal, então segui o sólido, me apoiando na Distribuidora. Estava em pé, e sentia as minhas pernas, que seguiam por um caminho que senti ser um estranho conhecido. Me deixei ir, as direções sendo dadas pela memória de algo que meus pés costumavam fazer.
Cheguei ao fim da zona habitável, mas não ao meu destino final; olhei para trás, para a bela caminhante limpa, a Pocilga, a Distribuidora que marcava zero no contador, as habitações similares padrão B da sistemática em vigor e para frente, para a zona de secção marcada pelo divisor baixo que ninguém atravessava, já que as sistemáticas das zonas habitáveis eram divididas para não atravessarmos e porque a Regra Padrão Regional nos faria incomunicáveis, e havia muita bagulhagem fora das zonas habitáveis e...
E já havia atravessado o divisor, caminhado pela calçada bagulhada e rachada e parado de frente para uma casa, que não era de nenhuma das sistemáticas em vigor ou de uma que me lembrava. Não, aquilo não seguia nenhuma sistemática ou padrão pós-vencimento da guerra, porque foi feita antes disso, na época que haviam mini-humanos soltos e que haviam amores sólidos; ali estava a prova da existência desses tempos, tempos sólidos e antigos, mas parte do importante que foi tratado como se não fosse.
Dei um passo no caminho que dava na porta da frente, já que antigamente as casas tinham mais de uma porta e me lembrava dessa ter uma nos fundos também. Lembrava de ser uma miniatura de cabelos claros pelo quintal, que agora estava bagulhado e intransitável. Lembrava que usar a maçaneta exatamente do mesmo jeito, mas a porta não estava bagulhada e não fazia esse eco ao ser aberta.
O sólido na cabeça encontrou o sólido da casa, que é quase igual a como era antes de esquecer que existia: os mesmos objetos, as mesmas paredes, a mesma tinta, mas sem aquele amor sólido que costumava haver. Eu re-conheci aquele lugar por mim antes tão bem conhecido, mas que havia esquecido saber sobre.
Havia o cheiro do mofo, do bolor e da velhice, mas por baixo havia o cheiro de papel, de produtos para os móveis, de comidas que não lembro o nome, mas eu amava o gosto: estava tudo ali, menos os moradores. Caminhei até o canto do cômodo, com sua parede cheia de marcas de mais solares que consigo chutar, ficando de joelhos entre a bagulhagem que o tempo trás e abrindo um guardador antigo, que antes tinha outro nome e cheirava bem por causa de um óleo que os adultos passavam nas coisas. E ali estava eu, num lugar muito profundo e muito perigoso, mas não importava mais porque eu os vi: eu vi dois humanos adultos mostrando os dentes para algo e dois mini-humanos no meio, esses com dentes faltando, mas todos estavam ali, amor sólido entre eles e registrado naquele papel velho...e um dos mini-humanos era eu.
Ali estava, o sólido do peito ameaçando vazar de mim e tocar as coisas, porque aqueles humanos eram parte de mim e eu deles, e existia um nome para isso: família. Era assim que se vivia para sempre antes, mas era de um jeito diferente, complexo. Naquele papel, minhas mãos seguravam uma flor de um lado e a mão do meu irmão do outro, nossos pais estavam de cabeças juntas e a guerra contra o tempo não havia batido em nossa porta de vez. Ainda se usava uma medida estranha para marcar as coisas, os anos. Ainda não sabíamos que meu irmão e eu iriamos receber marcas de tempo, e nossos pais iriam para sob a terra por serem velhos de mais para terem uma. Ainda não havia Oceano, Mar ou Líquido, e havia solidez.
O calor anormal nos meus olhos me fez pensar em onde estaria meu irmão, me fez lembrar coisas importantes que esqueci como se não fossem, fez tudo ao redor ficar sólido e palpável como não sentia havia anos, e estava num lugar muito profundo do qual não queria sair.
Penumbra acabou, solar começou. As ferroadas das marcas temporais aumentaram, mas não importava, porque eu estava em casa. Eu estava em casa e me lembrava e não havia liquidez sem ser a dos olhos, porque eu chorava. Mas as ferroadas aumentaram, tomaram espaço e o ar ficou sólido, não havia como respirar.
Mas, sem demorar muito, voltei a respirar. Eu estava em casa, chorando, e minha mãe me abraçava, fazia carinho nos meus cabelos. Eu segurava um ursinho, e meu irmão e meu pai entraram com os rostos amassados do travesseiro.
O sol brilhava, e era manhã. E eu voltei a solidez.
VOCÊ ESTÁ LENDO
O papel velho & a Oceano
Science FictionTempo é tão irrelevante que não se conta mais. Existe a Oceano, que veio após a Mar e a Líquido. Em um mundo flúido, onde nós cabemos e quem somos?