o abismo

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Quando se olha muito tempo para o abismo, o abismo olha para você.
_Nietzsche.

Ao acordar, vi os primeiros raios de sol e lembrei de certa tarde de verão. A casa estava cheia de visitas e eu repousava tranquilamente em meu quarto. O sol começava a se por e a janela com vidro amarelado deixava tudo mais bonito, até poético, de certa forma. A sensação era boa. Eu não gostava de barulho, mas o som das vozes das pessoas me fazia sentir menos solitário.
Na verdade, eu odiava a minha vida porque eu não fazia o que queria. Sentia que tinha que fingir. Eu não me sentia eu mesmo. Eu pensava que não era real. Eu sempre tive poucos amigos, e mesmo assim não conseguia me abrir profundamente com nenhum deles. Minha vida era monótona: nada de namoradas ou namorados, sem festas, sem bebidas, não possuía talentos, não era inteligente. Porém, no momento em que acordei naquele local pouco iluminado e úmido, desejei aquele momento em que estava no meu quarto estudando. Minha mãe me disse algo antes de sair de casa: que aquele era o melhor dia de sua vida. Não entendi o que aquilo significava. Percebi que minha juventude desperdiçada era minha culpa. Vivi apenas trancado no meu quarto e me preocupando com o amanhã, vendo o os ponteiros se arrastando rapidamente dentro de uma caixa. Chorei todas as noites, querendo saber o motivo de me sentir tão vazio e fora da realidade. E agora, eu iria morrer sozinho em um lugar desconhecido. Senti lágrimas quentes escorrendo pelas minha bochechas. Olhei em volta e percebi que estava em um quarto pequeno sem nenhum móvel, e havia dormido sobre um colchão velho. Na parede ao lado tinha uma janela de madeira com uma rachadura, por onde passava a luz.
Ouvi passos
Estava perto
O trinco dourado girou e atrás da porta havia um garoto mais ou menos da minha idade. Usava um macacão surrado e sujo.
_ olá, amigo_ ele disse, com um sorriso no rosto e acenando com a mão. Era estranho o modo como seu corpo era tão rígido e seus olhos tão brilhantes
_oi
Eu tinha um milhão de perguntas, mas não consegui falar nada.
Ele se aproximou e me puxou pelo braço. Era estranhamente forte para um garoto tão magro. Apenas me deixei ser levado porque não consegui ter nenhuma reação. O toque de sua mão gélida me deixava arrepiado. Seus passos eram firmes e o chão de madeira fazia um barulho cada vez que seus pés batiam nele.

_ pra onde você tá me levando?_ finalmente consegui falar, mas minha voz saiu tão trêmula que temi que ele não tivesse entendido uma palavra.
Ele continuou calado e me puxando, eu  tropeçava nos meus próprio pés. Atravessamos alguns corredores, subimos uma escada e chegamos a uma janela. Aquela parecia ser a parte de trás da casa. Senti algo nostálgico ao ver a paisagem cheia de flores roxas. Eram tantas que fiquei hipnotizado.

_ puxa, aqui é tão bonito_ disse, ainda sem conseguir desviar os olhos da vista a minha frente_ é tudo seu?

_ sim. Eu odeio tudo isso

Franzi o cenho e virei meu rosto para lhe olhar. Desejei não ter feito isso, pois no lugar dos olhos negros e brilhantes estavam dois buracos vazios. Era exatamente como no dia anterior, quando vi aquele rosto na floresta. Eu quis fugir dali. Meu maior desejo era voltar para o meu quarto, no dia em que tudo começou. Eu já não sabia quanto tempo havia passado naquele lugar, como se aquele espaço causasse uma distorção no espaço tempo. Já começava a esquecer até mesmo quem eu era. Então eu dei dois passos para trás, até bater minhas costas em um móvel velho. Me virei de costas e corri como nunca antes. Mas tudo passava em câmera lenta e minhas pernas começaram a ficar dormentes, como se eu estivesse em um sonho. Eu caí no chão e fiquei imóvel.
Novamente acordei. Dessa vez, estava na minha cama. Levantei rápido e olhei para todos os lados sem acreditar. Tudo não havia passado de um pesadelo. Suspirei aliviado e fui até a cozinha, onde encontrei minha mãe cortando carne. Passava a faca suavemente pelo pedaço de animal morto e o sangue escorria até bater no chão. Estranhei o fato de ter tanto sangue em um pedaço tão pequeno. Quando ia falar, ela se virou bruscamente e começou a falar:

_ sua alma é um presente, é por isso que precisa dar ela_ esbravejou, apertando ainda mais a faca na pele do animal. Sua voz estava mais grossa e os olhos eram vermelhos.

Sacudi a cabeça e saí pela porta da sala, que estava há alguns metros. Mas ao invés de encontrar a rua, me vi diante de um abismo, o qual tinha fim logo a frente.

_tudo que precisa fazer é me entregar a sua alma. Esse dia está escrito desde o dia em que você veio ao mundo_ uma voz rouca sussurrou perto do meu ouvido, fazendo com que meu corpo desse um sobressalto_ eu vendi a minha alma para o diabo em troca de dinheiro para ter o que comer. Infelizmente eu fui enganado. Agora eu preciso da sua alma para voltar ao mundo real.

_ eu sinto muito por você, mas não tenho culpa de nada_  disse, ainda sem me virar, com medo de encarar aquele rosto novamente. Uma lágrima solitária escorreu e logo foi levada pelo vento.

_mas foi sua própria mãe quem me ofereceu sua alma porque disse que você era amaldiçoado_ falou, rindo cinicamente. Um sorriso diabólico pintava sua face pálida.

_isso_ fiz uma pausa para me virar para ele. O criatura me olhou no fundo dos olhos, como se soubesse tudo o que se passava pela minha cabeça_ isso não é verdade!

Já não controlava minhas lágrimas nem meu tom de voz, deixei tudo sair com intensidade, porque eu não aguentava mais.

_ você foi fruto de um estupro e sua mãe sempre o odiou. Ela achou que estivesse vendendo sua alma para o diabo, mas era para mim.

_ do que você 'tá falando? É um lunático, isso sim!

_ eu vendi a minha alma para o diabo quando ainda era muito novo_ sibilou, passando a mão áspera no meu rosto, me fazendo tremer inteiramente_ pelo menos eu morri jovem e belo_ sussurrou antes de me puxar pela nuca e beijar meus lábios. Aquilo era o beijo da morte. O beijo do diabo. Sua boca era gelada, mas estranhamente acolhedora. Eu não me mexia, apenas deixava que ele fizesse o que queria.

Então tudo que eu estive questionando pelos últimos anos na minha vida fez sentido naquele momento. Todo o vazio era a minha alma perdida buscando pelo corpo certo. Aquilo não era palpável, era irreal. Mas fazia tanto sentido. Nesse instante, meu corpo parecia pegar fogo. Depois o estranho separou o beijo. Seus olhos negros me encaravam como se soubesse de todos os meus segredos. Me senti exposto diante daquele olhar.
Caminhei até a borda do penhasco, sendo acompanhado pelo estranho. Encarei o abismo. Foi minha última vista antes de sentir meu corpo ficando leve e minha mente nublada. Meus últimos pensamentos foram memórias da escola e as tardes solitárias que passava no meu quarto. Todas as imagens pareciam borrões na minha mente. As vozes  iam ficando distantes, assim como quando eu dormia no sofá enquanto as amigas da minha mãe conversavam na cozinha. Eu não tive coragem de acabar com meu sofrimento, e alguém fez isso por mim.

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