TRÊS DIAS DEPOIS
Na quinta-feira, tudo que tinham comprado e ganhado já havia acabado. O dinheiro se foi com as taxas que tinham que pagar e logo se viram enfrentando a fome novamente. Por isso, naquele dia em especial, que começou já com um sol escaldante, e por causa da constante murmuração de Kevin, que estava faminto, Raul saiu cedo para o semáforo, deixando o garotinho na cabana, esperando pelo seu retorno com algo para comer.
Então Kevin saiu da cabana que, com aquele clima quente, ficava escaldante e se sentou sobre um tijolo, pondo-se a observar o movimento dos carros. À certa altura, ele desviou seu olhar do trânsito, apanhou uma vareta qualquer e começou a rabiscar o chão de terra quando, de repente, percebeu um carro parando no acostamento da avenida. Imediatamente, ergueu os olhos e, quando viu Lorena, ignorou completamente as palavras de Raul, que havia pedido para que não falasse com a loira, e saiu correndo em sua direção.
— Lorena! — gritou a todo pulmão e, alcançando-a, ela que mal havia saído do carro ainda, abraçou-a como se fosse seu mundo.
Kevin estava sujo e malcheiroso, mas, com sua inocência de criança, aquilo não pareceu ser motivo para evitar a proximidade com Lorena que, sem muita cerimônia, retribuiu seu abraço.
— E aí? Como você tá, Kevin? — perguntou a loira.
— Eu tô bem! — respondeu o garotinho. — Cadê seu filho?
Lorena riu internamente. As crianças têm boa memória.
— Ele tá na escola.
— Que horas ele chega? — Kevin perguntou com curiosidade.
— Só de tarde — respondeu Lorena olhando para os lados. — Você tá aqui sozinho?
— Tô. O Raul foi trabalhar.
Kevin se deteve por um instante e coçou os cabelos antes de dizer:
— Ele falou que não era pra eu conversar com você.
— Por quê? - Lorena perguntou, confusa e curiosa ao mesmo tempo.
— Porque...
Kevin coçou a cabeça outra vez.
— Porque ele não gosta de você.
— Não gosta de mim? Mas por quê? — Lorena perguntou com um meio sorriso.
— Porque teve uma moça, uma vez, que me levou pra longe e ele disse que você vai fazer a mesma coisa.
— Não, claro que não! — a loira exclamou ainda sorrindo.
— Você não quer me levar embora?
— Não. Por que eu iria separar você do seu irmão?
— Eu não quero ficar longe do Raul - Kevin disse docilmente.
Lorena suspirou, encantada, e se abaixou na altura do pequenino, segurando-o pelos ombros e dizendo:
— Eu não vou te tirar do seu irmão. Eu sei que você ama ele e quer ficar perto dele.
— Mas ele não confia em você. Ele disse que você é só uma mulher rica que não quer o meu bem.
A loira ergueu as sobrancelhas, surpresa com aquelas palavras. Mas não se ofendeu, na verdade, achou engraçado e disse:
— Seu irmão é muito desconfiado, hein!
Kevin riu e concordou:
— Ele é mesmo.
— Vamos fazer assim. — Lorena se reergueu. — Que tal se eu comprar um picolé para você e para o seu irmão?
— Mas ele não tá aqui.
— Não tem problema. Quando ele chegar, você entrega ele.
— Tá legal! — Kevin exclamou saltitante.
Então, quando Lorena estava prestes a segurar a mão do garotinho para atravessar a avenida e ir até a praça, onde havia um vendedor de picolé, Raul apareceu com uma sacola com dois cachorros-quentes e seu monociclo. A sacola foi parar no chão quando o jovem rapaz se apressou e puxou Kevin pelo braço, trazendo-o para perto.
— Aonde você acha que está indo com o meu irmão? — questionou Raul, que apesar de ser calmo, naquele momento, estava irritado.
— Eu estava levando ele ali, naquela praça, para comprar um picolé — Lorena se justificou um pouco intimidada.
— E quem te deu permissão para fazer isso?
Lorena olhou para Kevin, que, seguro nas mãos de Raul, tinha os olhinhos marejados, e disse voltando o olhar para o irmão mais velho:
— Ninguém, mas...
— Eu conheço as pessoas da sua laia. Vocês vêm, conquistam o meu irmão, prometem o mundo para ele, e depois me passam a perna, levando ele para um lugar longe daqui e me proibindo de vê-lo. Mas, dessa vez, não!
Raul se deteve. Aquele não era ele. Seu jeito de ser era bem menos bruto. Na verdade, aquela era a primeira vez em muito tempo que ele se alterava. Quando, porém, notou que, talvez, estivesse indo longe demais com as palavras, um embargo quase inevitável tomou conta da sua garganta.
Então, vendo que o irmão havia engolido o restante das palavras, Kevin, mesmo com os olhos marejados, se virou para ele e disse:
— Ela disse que não vai me separar de você, Raul. Eu perguntei.
Raul olhou para Kevin e depois para Lorena, dizendo na sequência, agora, mais calmo:
— Desculpa. Eu não quis me alterar.
A loira, que não esperava por aquele pedido de desculpas, sorriu fraco e disse sem ressentimentos:
— Tudo bem. Eu não devia mesmo querer levar seu irmão para um lugar sem te perguntar antes. Mas eu só queria ajudar.
— Tá vendo, Raul? Tá vendo? — Kevin perguntou e se desvencilhou das mãos do irmão, indo até Lorena e a abraçando. — Ela é um anjo.
Lorena retribuiu o abraço, como havia feito mais cedo, e olhou para Raul que, apesar de ter pedido desculpas, não havia engolido aquela ideia da loira ser uma boa pessoa.
VOCÊ ESTÁ LENDO
O Malabarista - Concluído
SpiritualRaul é um morador de rua que perdeu sua mãe e, desde então, vive debaixo de um viaduto com o seu irmão mais novo chamado Kevin, de apenas 7 anos. Ele vive sem muita esperança de ter a sua sorte mudada, embora esteja sempre consolando o seu irmão, di...