Notícias falsas, conspirações reais

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Já passava muito da meia-noite e Tomás ainda estava no seu quarto em frente ao computador. As luzes do quarto estavam apagadas e a luz branco-azulada do monitor torrava as suas retinas, enquanto seus olhos passeavam de parágrafo em parágrafo no site "Cosmos e conspirações" — histórias sobre extraterrestres, fantasmas e creepypastas criadas pelas mais desocupadas mentes juvenis, provavelmente também de madrugada. O site era mais um desses depósitos de lixo sensacionalista, mas Tomás amava captar cada teoria sem cabimento. A leitura da vez era "A Pandemia: Um projeto", e seu argumento advinha da ideia de que a pandemia — pela qual  o mundo todo do lado de fora do quarto de Tomás passava — era um projeto de testes de armas biológicas financiado pelos EUA, afim de culpabilizar a China pelo desastre viral e desestabilizar a economia e ascensão do país oriental. Esse tipo de notícia duvidosa era amplamente distribuída como verdade absoluta em grupos de redes sociais que pipocavam nos celulares modernos, fazendo com que senhoras e senhores de idade avançada, e também uma classe média medíocre e de mente senil, realmente acreditassem na veracidade daqueles supostos fatos.

Tomás já estava ali a horas. Subia e descia com a barra de rolagem da página enquanto seus olhos capturavam cada palavra e armazenavam essas informações frescas na parte mais significativa de seu cérebro. Era prazeroso. Ele se sentia com o conhecimento do mundo inteiro em suas mãos, como se só a ele fosse revelada a verdade que os porcos tentam esconder, e as quais a emissora de televisão mais popular não mostrava.

Ele nem se preocupou com o silêncio tumular, que era apenas entrecortado pelo barulho suave e ligeiro da ventoinha girando dentro do seu computador. Fora isso, nada mais fazia barulho. Nem os gatos no muro. Nem os cães que eventualmente latiam para o que quer que eles vissem. Nem os carros ou motos que se aventuravam na noite, indo ou voltando de algum lugar e que passavam com certa frequência em sua rua. Tudo era mudo, menos as palavras dançantes na mente de Tomás.

"As trilhas de nuvem no céu, também conhecidas como chemtrails, são os rastros dos agentes químicos lançados pelos aviões no povo abaixo. Foi isso que deu início à pandemia, em primeiro lugar." 

"Os mortos precisam ser enterrados em caixões lacrados, pois, se cremados, os compostos químicos em seus cadáveres retornam para a atmosfera e se precipitam na terra em forma de chuva, causando assim mais contaminação pelo vírus através da umidade do ar."

"Os principais sintomas dessa enfermidade viral são: mal-estar geral; pequeno aumento de temperatura; cefaleia; náuseas; dor de garganta; entorpecimento; irritabilidade; inquietude; sensação de angústia; podendo chegar a óbito."

Quando leu esse último parágrafo, Tomás percebeu que havia dado o último gole em seu refrigerante. Desviou por um segundo o olhar para o copo vazio de líquido e com restos de gelo, soltou um muxoxo e estalou a coluna, levantando-se da cadeira irritado por ter que ir até a cozinha buscar mais. Foi até a maçaneta da porta e girou devagar a chave que mantinha seu quarto trancado. Não queria acordar a mãe que dormia no outro aposento.

Ele abriu a porta e saiu para o corredor escuro que ligava o quarto até a cozinha. Tateou a parede em busca do interruptor que acendia a luz, mas nunca o encontrava de primeira. Um pequeno calafrio borbulhou em seu estômago. Todos os pensamentos daquele texto que acabara de ler e de muitos outros textos sobre espíritos e sombras, demônios em fotografias e vídeos, os mortos pelo vírus e os assassinos em série, todos eles investiram de uma vez em seu pensamento, se tornando tão palpáveis quanto a própria parede fria e áspera que ele tocava. Ele fechou os olhos com força — não se atreveria abri-los no escuro. Nesse ponto sua respiração já arfava, seus braços se agitavam procurando desesperadamente a fonte de luz. O frio metal do parafuso preso na caixa do interruptor foi ao encontro do seu toque e, logo acima dele, a pele dos dedos deslizaram pela forma retangular e flexível que lhe traria a visão e a segurança. Um clique e estaria a salvo.

Os dedos empurraram com leveza o interruptor para cima. A luz do corredor piscou, como se a lâmpada já estivesse comprometida, e continuou piscando em espasmos alternados. Tomás abriu os olhos lentamente ao perceber que não havia incidência de luz, mas sim flashes que brincavam através de suas pálpebras. Ele deslizou seu olhar lentamente em direção a cozinha e seu coração explodiu como se houvesse levado um tiro, em uma única batida retumbante. À sua frente, estava uma figura pequenina, de braços e pernas magrelas, com uma camisola florida até metade dos joelhos.  Os cabelos louros acastanhados estavam completamente desgrenhados. A boca pálida espumava algo amarelo como bile. Os olhos encovados revirados nas órbitas. A criatura tremia pelo corpo todo, e estava molhada como se suasse em febre. 

Tomás não conseguia desviar o olhar. Seu estômago revirou-se de medo, e revirou-se mais uma vez quando ele notou o odor de fezes que emanavam daquilo. Trêmulo, uma lágrima lhe escorreu no rosto quando percebeu aberta a porta do quarto onde sua mãe dormia. Olhou mais atentamente para o monstro entre os flashes de luz e constatou: 

Aquilo era sua mãe.

A mulher idosa,  contorcendo-se em meio a luzes piscantes, arrastou sua carne magra lentamente em direção a Tomás, um passo rastejante após o outro. O cheiro ficava cada vez mais intenso, uma mistura de diarreia e suor velho maculava toda a casa. Tomás, num impulso e aos berros, voltou com rapidez para seu quarto. Segurou na lateral da porta e a empurrou, mas foi impedido de fechá-la por duas mãos descarnadas com uma força monumental, que agora se lançavam com ódio do outro lado, empurrando e forçando a porta contra ele.

Sua mãe rosnava como um cão e arranhava a madeira. Suas unhas eram arrancadas de seus dedos em um barulho gosmento, tamanha investida furiosa contra a porta. Tomás sentiu o fedor de seu hálito e todos os outros cheiros se misturaram e o confundiram, descarregando uma poderosa dose de adrenalina em seu corpo, fazendo com que ele batesse a porta violentamente e, segurando-a com o peso do corpo, seus dedos giraram a chave da fechadura, trancando-a.

Estrondos sacudiam a porta pelo outro lado. Batidas agressivas se misturavam a grunhidos e gritos de pura raiva, como se duas vozes, uma grave e outra aguda, estivessem juntas dentro do mesmo corpo apodrecido.

Dentro do quarto, ele cambaleou e caiu de costas, afastando-se o máximo que conseguia da entrada. Não podia acreditar no que estava acontecendo. Sua mãe berrava incontrolável, esperneava e chutava a porta com brutalidade. Tomás engoliu golpes de ar e o seu quarto começou a girar. Ele sentia que iria vomitar a qualquer momento. Tampou os ouvidos e cerrou os olhos com força, esperando tudo parar, esperando tudo ser um sonho.

Foi então que ouviu um barulho abafado pelas mãos nas orelhas: um crec de madeira se partindo e, em seguida, um braço arranhado com farpas fincadas e nacos de carne pendentes entrou pelo buraco na porta, fazendo pequenas poças de sangue no chão e procurando a fechadura. 

A mão cadavérica girou a chave do quarto. A porta se arrebentou na parede e a mãe entrou gritando e gemendo, ávida de cólera em um ímpeto assassino. Tomás rastejava de costas no chão, quando a criatura se precipitou sobre ele. Seu último movimento foi passar a mão sobre sua escrivaninha, em busca de qualquer coisa que pudesse usar como arma. Levou meio segundo do momento em que ele sentiu o toque gelado de uma tesoura que repousava sobre a mesinha, ao momento em que sua mãe era empalada no crânio pela mesma ferramenta cortante. Pus, sangue quente, o fedor de cobre, merda e suor, o peso do corpo frágil da mãe caindo como uma boneca de trapos em seu colo, vazia de tudo e se esvaziando aos poucos, foram as sensações que afogaram os sentidos de Tomás e o entorpeceram. Como um autômato, ele empurrou o cadáver para o lado e se levantou vacilante. Não sentia mais o chão embaixo dos seus pés. Sua cama estava atravessada por uma rajada vermelha de sangue borrifado. A cadeira do computador caída ao chão foi levantada sem muita cerimônia. Tomás sentou na cadeira e viu na tela algumas gotículas vermelhas salpicadas. Na tela branca do computador, o display de rede mostrava que a internet estava fora de sinal. O dinossauro de pixels cinzentos confirmava a quebra da conexão. Ele atualizou a página. E atualizou a página mais uma vez. E outra. Cada vez que clicava na seta giratória sentia uma pontada ínfima de esperança de que sua conexão retornaria. E o fez mais uma vez. Lágrimas quentes escorreram pelos seus olhos, liquefazendo em borrachos a luz da tela e todo o seu conteúdo informativo. E então vieram os soluços e o seu mundo todo desabou em pranto.

Tomás ainda não havia notado o silêncio na rua sendo quebrado pelos barulhos de sirenes ao longe, e nem os  gemidos fracos de sua mãe de pé e com a tesoura na mão logo atrás dele.

Notícias falsas, conspirações reaisWhere stories live. Discover now