– Eu vou!
Era suficiente para alarmar meus pais que conversavam sobre a casa da vovó. Ela havia morrido há quase 3 anos, e o imóvel tinha ficado completamente vazio. Os outros filhos, meus tios, não tinham o menor interesse nela. Com um bom salário todo mês, e suas casas no centro das cidades, ir até uma cidade pequena, quase interior, não era a opção primordial. Diferente das histórias que eu ouvia, se a casa fosse parte de uma herança compartilhada não teria nenhuma disputa. Mas a vovó escolheu deixá-la para minha mãe. Senti seu olhar me questionando se era isso mesmo que eu queria.
– Valentina, ninguém vai naquela casa a anos. A última vez foi para pegar os documentos de sua avó e resolver a papelada, você sabe...
Ainda era difícil pra ela falar. Não sei se um dia deixaria de ser.
– Mãe, eu preciso de algo novo. Eu sei que a casa é velha, mas você entendeu. Eu não aguento mais...
– ...ficar aqui. – meu pai concluiu e parecia magoado.
Suspirei enquanto ia até ele e beijava seu rosto.
– Claro que não. Enquanto o William estiver aqui eu não aguento mesmo. – tentei quebrar o clima tenso.
– Eu ouvi isso– meu irmão gritou do sofá da sala.
– Não se trata de estar aqui. Se trata de estar inerte ha tanto tempo. Eu estou desempregada, o final do semestre está acabando, o que me da uns 2 meses de férias da faculdade. Estou surtando.
– E solteira! – O grito veio da sala outra vez.
– Porque não sai um pouco, minha linda? – minha mãe sempre tentava mudar minha opinião, mas no fundo sabia que só poderia retardar – Chama aquela menina, a doidinha.
– Mia? – ela não precisava responder. Tem adjetivos que se bastam. – Sair pra onde, mãe? Passear na rua porque não tenho dinheiro pra ir numa praia decente? Prefiro ver Gilmore Girls em casa.
Ela não ousaria me oferecer dinheiro, com 21 anos eu achava o cúmulo parecer uma criança e pedir umas moedas a cada passeio que eu quisesse fazer. Sinto falta de quando eu tinha 15 e achava que era possível dividir um apartamento com minhas amigas e fazer uma república aos 18 anos. Culpa dos meus tempos na frente da tv assistindo Malhação. A mídia só ilude.
O clima ficou tenso, eles sabiam que eu não desistiria. Caminhei pelo corredor e fui direto ao meu quarto, que ficava no final, já sabia o que tinha que fazer. Mandei mensagem pra Mia, vulgo doidinha. Em alguns instantes ela estava na porta da nossa casa.
– Mulher, quanto tempo seu quarto não vê uma tinta nova? Você tem essa mesma cor na parede desde os 15 anos.
Ela me conhecia desde a infância. Sempre morei naquela mesma casa, meus pais não são grandes adeptos de mudanças, e ela se mudou quando eu tinha uns 7 anos, como haviam poucas crianças que moravam próximas, nos apegamos.
– Precisamos conversar. – Falei sentando na cadeira e fazendo– a arrastar até ficar na sua frente.
Seus olhos arregalados me encaravam.
– Não é nada disso que está pensando, amor. Eu sei que você me viu mais cedo com seu irmão, mas ele que estava dando em cima de mim... e você sabe eu não sou tão forte.
Sua atuação era digna de um óscar. Ela com certeza havia escolhido o curso errado.
– Design de interiores não realça seu melhor ângulo, já pensou em Artes Cênicas?
Ela sorriu.
– O que manda? – Perguntou. – Quem teremos que matar?
– Minha vó tem uma casa. Antes de morrer ela deixou para minha mãe, mas a gente não conseguiu ir lá depois do acontecido.
– Mas isso já tem uns 2 anos, não é?– franziu as sobrancelhas
– Na verdade quase 3. Mas ela é filha. Imagine se o mesmo acontecesse conosco?
– É verdade, eu pediria para ser enterrada como dona Selma, sem dúvida. Não gosto nem de pensar nisso.
Fez– se silêncio. Estávamos pensando no que não gostaríamos de pensar. Cortei.
– Nem eu. Eu a respeito, e pedi a ela pra me deixar ir.
– Na casa da falecida? – Alguém estava com medo?
– Sim. Eu quero muito ter algo novo, sabe?
– Em uma casa velha? – Mia parecia incrédula.
– Preciso sentir algo, Mia.
– Não seja por isso – Me beliscou.
– Ai, idiota. Não... preciso de mais que isso. – Arrastei a cadeira para mais longe – Preciso pensar em algo. Mia, você sabe como fiquei agoniada nos últimos anos. Você mais que ninguém sabe que não estive bem. Foi desemprego, término de relacionamento, emprego novo, desemprego de novo, cuidar de mãe e pai quando minha vó faleceu, gritar com meu irmão, matéria perdida. Parece que estou numa sucessão de quase esgotamentos emocionais. Eu só quero descansar das pressões.
– Indo para uma casa mal assombrada? Sério, Valentina?
– Não tem assombração. Sabe quando você dizia que precisava viajar para Chapada Diamantina e fazer umas trilhas?
– Por favor, não encaixe minha Chapada nessa conversa estranha. Preciso ficar com as boas lembranças de lá.
– Ok. – respirei fundo – E quando você disse que queria ir pra Cachoeira?
– Pior ainda, nem sei se vou algum dia. Tem histórias macabras daquela cidade. Porque baiano gosta de estragar as paisagens com aquelas lendas, hein? Só perdem turistas.
Mia bufou, fingindo sentir calafrios. Eu não poderia discordar dela. E quando soubesse que a casa de minha avó ficava no interior da Bahia, o surto era certo. Mas o plano precisava continuar.
– Meus pais não querem me deixar ficar la sozinha. Ter 21 anos não significa muito para eles, ja tentei. Vem comigo, por favor!
– Você sabe que eu não gosto dessas coisas, Val. Não me peça isso, por favor. – Mia já estava de pé massageando a testa.
– Eu já pedi. E outra coisa – eu tinha uma carta na manga, esperava que valesse algo. – A casa tem alguns anos, a construção está quase fiel à primeira versão. Arabescos nas portas. Vitrais nas janelas.
– Vitrais? – ela não parecia tão empolgada. – Eu faço decoração de interiores, não arquitetura, ou história. – Mia dizia parecendo ser bem óbvio a diferença.
– Que tal só me ajudar a arrumar então? Uma semana só.
– Sete noites dormindo lá?
– Eu chamo o Wil.
– Sete noites dormindo lá... – ela repetiu parecendo mais interessada. – Vamos fazer o seguinte: passo o final de semana. Se ouvir correntes arrastando durante a noite, eu volto sem pensar duas vezes.
– Ok! – Falei com um sorriso que não fazia questão de disfarçar– Acordo fechado. – estendi a mão para ela.
Ainda vacilante ela apertou de volta. Me levantei caminhando em direção a porta. Tinha outra missão a cumprir, precisava convencer o Wil.
– Fica no interior da Bahia, ta? – disse como se fosse só mais um detalhe e não esperei para ouvi–la reclamar.
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Um amor não correspondido
Short StoryValentina não imagina que passar um tempo na casa da avó poderia leva-la a uma missão tão diferente. Ao descobrir que sua vó recebia inumeras cartas de remetentes diferentes, ela percebe que há mais no seu passado do que poderia imaginar. E no meio...