***Nota do autor para quem estiver lendo isso: Essa história não tem nenhum compromisso com fatos, embora todo o conteúdo narrado aqui sobre a cultura cigana tenha sido pesquisado em plataformas de informação. A opinião dos personagens não é a do autor.
Eu nunca havia pensado muito sobre liberdade até o momento em que comecei a me conhecer profundamente. Até então eu era só uma criança seguindo os costumes, as tradições e a cultura da minha etnia sem questionar o motivo delas existirem e de eu ter que segui-las a risca..
O peso de alguém pulando na água do rio ao meu lado junto de um grito eufórico chamam minha atenção, me roubando das minhas reflexões.
Tinha que ser o Vladimir e ele começa a tacar água em mim, rindo como se ainda tivesse uns nove anos.
— Para com isso, Vladimir! — ralho impaciente.
— Deixa de ser chato, Ramon! É muito rabugento mesmo, né?
— Você sabe que venho pra cá exatamente pra ter paz e tu vem me encher o raio do saco!
— Desculpa, eu só estava tentando te distrair um pouco.
— Tudo bem, já tinha terminado mesmo — faço menção de sair da água e voltar para o acampamento, mas sou segurado.
— O que foi? Você está estranho hein!
— Estou normal.
— Você devia estar feliz por sua irmã se casar. Eu sou o homem certo para ela. Te garanto.
— Ela só tem quinze anos. Vai ter que largar a escola depois que se casar com você. Não acha isso ruim?
— E daí? Nossos destinos já foram premeditados.
— É exatamente isso que me incomoda. Não deveríamos ser livres para escolhermos nosso próprio destino?
— Você anda tendo uns pensamentos muito estranhos... Qual o problema? Não gosta da vida que temos?
— NÃO é isso.
— Ah já sei, você está chateado por que eu vou me casar primeiro que você né? — ele me dá um murro de leve no ombro com tom de brincadeira. — Mas relaxa, depois do nosso casamento será o seu e estaremos quites. Teremos nossas próprias tendas.
— Grande coisa — bufo inconformado.
— Ei — ele olha para os lados para ter certeza que não há ninguém por perto e me encara. — Vamos continuar nos vendo. Nada mudará. Se o seu temor é esse pode ficar tranquilo.
— A questão é essa, Vladimir. Eu não quero continuar me encontrando com você escondido, como se estivéssemos fazendo algo muito errado. Além disso, não quero me casar e ter que viver duas vidas, uma com a Dalila e outra com você. Eu não quero continuar fingindo que não sou quem eu sou...
— Mas para quê se podemos continuar do jeito que estamos? Podemos ficar juntos e continuar seguindo as tradições. Se não tivermos filhos e passarmos nossas tradições para eles, nosso povo deixará de existir. É isso o que você quer?
— Claro que não! Eu só acho que algumas coisas podem ser adaptadas. Você não concorda? Nossos costumes e nossa língua ainda poderão sobreviver.
— Você quer mudar o que sempre existiu. Se continuar com esses pensamentos, será repreendido, então trate de tirá-los da sua cabeça, está bem? —fico calado. Estou chateado porque sempre que tento convencer Vladimir a assumir nosso romance, ele se esquiva repetindo os mesmos argumentos que se perpetuam há gerações. — Ei, não fica assim, vem cá, vamos aproveitar que estamos sozinhos... — ele me puxa pelo cabelo e roça sua boca na minha. Tento resistir, mas parece que eu não tenho controle sobre minha própria carne quando o assunto é Vladimir e não demoro a correspondê-lo com a mesma intensidade que ele praticamente devora meus lábios. Isso me faz recordar a primeira vez que nos beijamos como dois homens que desejam um ao outro. Estamos nos envolvendo sexualmente há exatos seis meses. Quando éramos crianças, nós já nos amávamos só que de uma maneira completamente pura e esse sentimento foi se tornando maior e mais forte assim que atingimos a puberdade. Embora trocássemos olhares de cobiça, nunca tivemos coragem de nos aproximarmos intimamente até àquela noite de festa. Tudo é motivo de festejar para meu povo; nascimentos, a primeira menarca das moças em que os noivados são oficializados, casamentos, fases da lua, estações do ano e etc... Nossa religião é seguir o ciclo da natureza. Porém, muitos ciganos têm adotado as religiões do lugar em que vivem, por isso encontramos ciganos católicos, evangélicos, umbandistas, judeus entre outras crenças. Não somos uma religião. Somos um povo. Uma etnia discriminada há milênios. Fomos escravizados, mortos, expulsos e marginalizados apenas por sermos um povo que preza sua própria cultura e se já não bastasse tudo isso, ainda somos malvistos pela nossa própria comunidade se ferirmos as tradições, por exemplo, a principal delas: o casamento, um canal para gerarmos muitos filhos e passarmos nossos costumes para eles, evitando assim a nossa extinção.
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Beba deste cálice (CIGANO/GAY)
RomanceRamon é cigano, pertence a etnia Calon e cresceu levando uma vida peregrina pelo Brasil até sua comunidade finalmente conseguir se instalar em terras mineiras. Ele se entende gay e terá que enfrentar a própria cultura para ser quem realmente é.