Frisson

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O contorno turvo da fumaça se desfazendo acima do meu café, prendeu a minha atenção por longos segundos entediantes. Porque eu resolvi voltar pra casa? Reflexiva durante os primeiros momentos do dia - o que deveria ser criminalizado imediatamente - ouço um ruído que me tira do vácuo que havia transformado minha mente.
Minha mãe está recolhendo as roupas do varal. Nervosa. Estressada.
Deve ser porque não conversamos ainda sobre como foi o tempo em que estive em Campinas, estagiando em uma startup no vale do silício tupiniquim.
Ela não queria que eu fosse e menos ainda que eu passasse a ganhar mais que o meu pai que atualmente é técnico de informática em uma região nada promissora...
Entendo. Não é o "correto". Mas, não sou eu quem devo, como filha, dar o melhor para eles? Penso mais um pouco. Entre uma lufada de ar e outra. Um olhar perdido e outro.
— Sua entrevista não é às dez? — com uma maçã sendo polida na camisa de pólo novinha, meu irmão entra na sala.
— Jonathan... Devia guardar essa memória tão boa pro dia do seu vestibular. — dou uma ferroada certeira. Meu irmão de trinta anos, que ainda dorme no sofá da sala, me olha com um escárnio fora de série.
De novo: Porque voltei pra esse inferno? Eu sei que é a minha querida família. Porém, porque eu sou a única cheia de sonhos e objetivos aqui? Isso me desanima pra caralho às vezes. Uma família que nunca me apoiou em absolutamente nada. "Não querer algo melhor nessa país de merda".  Era um dos mantras do meu pai.
— Eu não vou fazer pela décima vez, essa palhaçada. Já trabalho com o velho. — mal trabalhado, mas se ele se satisfaz... Porque eu devo me importar?
Enquanto estive no polo da tecnologia, vi meu horizonte se expandir tanto que perdi o formato original ao qual fui por dezessete anos submetida. Não me encaixo mais aqui.
— Seu futuro chefe é homem ou mulher? — minha mãe, Hortência, questiona de rabo de olho na conserva que estava tendo com o meu irmão.
— Não sei ainda. Mas deve ser homem. É o mais comum nas montadoras. — afasto o café preto, falando com muito mais entusiasmo. Esse emprego é tudo o que eu mais preciso. Quero ter a minha independência logo e ajudar o meu pai a ampliar o seu negócio.
— Se tivesse aceitado o trabalho no Salão da Valéria, não teria que ficar tão perto de homens. É tão chato. Fora que eles podem se aproveitar de você. — mesmo com meus vinte e quatro anos, minha mãe tem a doce ilusão que sou virgem e em breve pretendo me casar de branco na igreja. Está bem distante disso.
— Dona Hortô, eu vou passar quase meu tempo todo em frente há uma tela de computador... E é muito provável que, meus colegas sejam um monte nerds introvertidos. — sim, acabo de me descrever junto. Apesar de me arrumar de forma genérica hoje em dia, por formalidade, sinto a menina que colecionava pôsteres da RBD e vivia metida em um jogo infinito do Nintendo, dentro do meu peito.
Pelo menos minha adolescência não foi tão ruim...
Depois de eu mesma passar devidamente a minha melhor camisa social e vesti-lá, já estava na hora de zarpar para um futuro próximo mais promissor. Pego a papelada que estava ao lado da garrafa de café, incluindo o papel com o endereço e o nome do entrevistador, e guardo na minha bolsa quadrada.
Mais um suspiro, mais uma conferida se tudo está certo. Ok.
O tempo um tanto úmido da manhã, mistura-se com as partículas molhadas da minha calça. Pensei que ela não estaria assim, ah, eu devia ter passado no ferro também... Esquece. O melhor que eu faço é andar em direção ao meu destino.
Para isso, peço um mototaxi já que quero chegar rápido e confiando na imprudência dos motociclistas brasileiros, não quero me atrasar no trânsito insolente de São José dos Campos.
O caminho todo vou matutando o que eu vou dizer... E se me perguntarem que bicho que eu quero ser? Entrevistas são medonhas. Muito mais quando se trata de trabalhar em uma grande montadora de carros de luxo da Jaguar. Eu sei que provavelmente, nem verei um possante desses perto e sim ficarei na área da mais fechada da empresa. Nos bastidores. Como eu gosto de estar.
Quase me afundando nas costas gordinhas do motorista, e descansando com meus olhos fechados, sou interrompida pelo travamento da moto, indicando que a corrida termina aqui.
Entretanto, logo que ergo as pálpebras, me espanto com o vasto campo e as estradas batidas de terra.
— É o endereço que me deu, dona. — avisa estranhado. Até mesmo inseguro com o que dizia. Nem ele acreditava que eu tinha algo para fazer frente há uma fazenda.
— Não. Acho que você leu errado. — apesar do estresse e dos meus neurônios derretendo de desgosto, sorrio e peço que ele me mostre o papel que entreguei.
Tranquila na expressão e tensa de raiva nas pontas dos dedos que tremem, vasculho o escrito de cima à baixo. Não só o endereço correto havia desaparecido, como a minha letra... Porra! Não é possível. Começo a gargalhar de tão desacreditada que fiquei.
Meu irmão havia reescrito na parte de trás um novo local. Aquele invejoso desgraçado.
— Viu? A corrida deu oitenta e seis. — avisa o cara mais sussegado com a minha confirmação. Quase cem. Com certeza, eu não tinha mais que isso e de longe conseguiria ir a entrevista. São nove e vinte.
Deslizo da moto, oca por dentro. Minha vontade de chorar era enorme. Mas, me seguro. Sou mais forte que isso. Não posso me abalar. Tenho que achar uma solução rápida e não me afogar nesses sentimentos de derrota... Sinto uma lágrima escorrer pela minha bochecha, a gota mais fria da minha vida.
Pago devidamente o motorista e fico com meus míseros reais troco. Uma possibilidade é ir andando até achar um ponto de ônibus, felizmente trouxe o meu cartão para emergências.
Desbravo doze passos nos hectares que não parecem ter fim. Como que eu pude vir parar justo aqui? Porque fazendas tão grandes São Paulo? Murmurro, tentando me localizar no meu próprio eixo.
— Se eu for por onde ele foi... Eu tenho o meu norte. Merda... Eu deveria ter pedido ajuda pro motorista. — sim, seria o prudente, porém diante do choque que me abateu, não consegui sequer abrir a boca e...
No instante que eu estou raciocinando sobre alguma saída dessa sinuca de bico, um tom bronco de voz me desperta a atenção imediata. Viro-me, a procura daquele quase sussuro em meio a vastidão de grandes hastes verdes cobrindo o solo. Olho para dentro das cercas da Fazenda e procuro sinal de vida. Talvez, eu podia pedir ajuda? Oh, Fazendeiros esnobes. Não deve ser uma boa idéia.
— Eu quero que aumente as cercas e pelo menos onde o gado está. — dois homens aproximam-se da entrada do lugar. Um velho senhor mais humilde e um cara de palitô no braço direito. Minha nossa, os fazendeiros já estão tão modernos e chiques?
— Sim, seu Conrado. — responde o senhorzinho quase gaguejando diante da imponência do outro.
— Minha mãe ainda se importa com toda essa porcaria. Então, continue as reformas do casarão que aqueles vagabundos pausaram no mês passado. — específica o playboy ranzinza. Ah, não sou só eu que estou tendo um dia de cão. — Estou em todos os lugares agora e não vou ser nada bonzinho como meu pai foi. — avisa com mais figor, olhando para o subalterno de muito acima para muito abaixo. Juro, que se aquele cara ridículo fosse meu chefe, ouviria muitas de mim.
Pena que o povo do campo é tão dependente de estabilidade. Esse é o maior mal de não se preparar para viver. Sem poder de escolha, você acaba refém de um sistema opressor.
É melhor eu esperar esse homem vazar e pedir alguma ajuda para o senhor muito provavelmente gente boa. Bem, deve ser pra suportar calado o embuste em forma de gente.
— Por acaso, temos uma advogada dos Sem Terra aqui de novo? Eu disse que ninguém presente aqui na fazenda e deixei o endereço do meu escritório pra que vocês despejem as ladainhas de sempre por lá. — altivo, em um ato bem desrespeitoso, sou pega em ganço pelo jovem burguês problemático.
Ele me gira para si e me força a encarar seus olhos marinhos vazios, sós como um farol no meio de um oceano turbulento. Meu rosto se cobre de emoções de raiva, contraindo minhas sobrancelhas até embaçar a visão.
Ah, que cretino...

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⏰ Última atualização: Dec 04, 2021 ⏰

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