No subúrbio da cidade de Santa Neves, em uma das casas coloridas com gramado alto, morava uma pequena família. Nilce e Victor eram casados há dez anos e decidiram ter um filho. A pequena garotinha era sorridente, trazia felicidade e alívio para o casal. Tinham uma vida boa, como qualquer família daquele bairro. Com um casamento estável e empregos dos sonhos, eles eram felizes.
Mas quando tinha cinco anos, a pequena garotinha sofreu um acidente. A morte precoce e dolorosa afetou o relacionamento deles e a saúde mental. Nilce tinha pesadelos com a filha às vezes até escutava a sua voz suave e os passos ligeiros pela casa. Sonhava com seu túmulo no cemitério, cheio de flores amarelas, as suas preferidas. Ela nunca reclamou da sensação, era uma forma de deixar a filha viva, mesmo apenas na lembrança.
Victor saía para beber e quando voltava, podre de bêbado, Nilce tinha que levantar da cama porque não conseguia dormir com ele, que emanava um cheiro forte de cachaça. Victor parou de trabalhar, exausto de fingir que a vida continuava a mesma, mas Nilce não se deixou levar e buscou em seu trabalho uma forma de descarregar suas frustrações. Passava mais tempo fora de casa porque não aguentava mais ficar uma hora sequer olhando para seu marido, que se tornou irreconhecível.
O casal não estava bem, mas era como se estivessem presos em um relacionamento ruim, sem coragem para sair.
Em uma das noites que Victor chegou bêbado, Nilce já estava deitada na cama, mas não deu tempo de levantar-se e se afastar porque aquela noite foi a primeira que ele a tocou desde que a filha morreu. Nilce não estava confortável, mas não foi capaz de dizer nada enquanto o observava em cima dela. O cheiro a atingindo em cheio, tendo de virar o rosto em certos momentos.
Mas quando ele finalmente acabou e deitou-se, apagou em cinco minutos. Nilce não conseguiu dormir naquela noite. O ronco do marido ecoava pelo quarto e ela não conseguia parar de pensar no que ela permitiu que ele fizesse porque ela tinha medo de dizer não. Já não conhecia mais Victor.
Após aquela noite, Nilce descobriu que estava grávida, mas não contou a Victor, seria um motivo para continuarem juntos. Ela pensou que nunca conseguiria se livrar dele, mas aquela gravidez inesperada e a violação do seu corpo foram a sua motivação para reunir as roupas de Victor e guardá-las dentro da sua mala preta na noite em que ela estava decidida a terminar tudo.
Olhar para Victor, levemente alterado pela bebida, lhe deu coragem para pedir a separação. Ela nunca pensou que chegaria àquele ponto, mas queria um mundo seguro para ela e seu pequeno feto, não um com o pai bêbado.
Victor nunca descobriu sobre a filha que Nilce esperava e ela a criou sozinha, na casa azul do subúrbio com gramado alto e dois integrantes a menos na família.
Mas Betina não nasceu como ela esperava. Quando ela cresceu, Nilce percebia que ela lacrimejava demais e seus olhos ficavam avermelhados com frequência. Betina foi perdendo a visão aos poucos, mas começou tão cedo que ela não conseguia nem lembrar-se do rosto da mãe. Foram a diversos médicos para descobrirem o que havia acontecido ou se ela poderia enxergar futuramente, mas em todas as vezes lhes tiravam as esperanças e decretavam que Betina nunca mais enxergaria.
Nilce já não sentia-se uma péssima mãe por não conseguir ajudá-la, ela sabia que algumas coisas simplesmente aconteciam e ela estava feliz em estar com Betina, que era só o que importava.
Depois que Betina nasceu, Nilce não sentia mais a presença da sua filha falecida, nem sonhava mais com ela. Só agradecia aos céus por Betina ter nascido saudável e ter passado dos dois anos. Nilce temia perder outra criança, mas ela nunca falou para Betina sobre sua outra filha. Não falava nem de Victor. Quando a garota perguntava do pai, ela só dizia que ele estava longe e aquilo era o suficiente porque as duas se bastavam. Nilce fazia de tudo por Betina, a acompanhava em todos os lugares porque não gostava de deixá-la sozinha, as pessoas às vezes podem ser ruins com pessoas como Betina.
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O que não vemos | ✓
Short StoryBetina é uma garota cega e está indo para a casa sozinha quando uma pessoa tenta conversar com ela.