TRÁ!
As mandíbulas da besta estalaram mais uma vez a morder o ar. O som dos dentes da fera se encontrando possuía a mesma intensidade de um trovão. E causava o mesmo efeito: O anúncio de destruição.
Já haviam derrotado o monstro antes. Agora ele voltara com força renovada e nada do que tinham feito contra ele surtia efeito. As cordas encantadas de Canindé mal atrapalhavam o avançar da criatura em direção ao jumento Judiado.
— O bicho tá mais escorregadio, Cego! — gritou Canindé deixando a ponta da corda deitar solta sobre o paul. Aço raspou couro.
Canindé saltou para trás e fez a fera morder o ar – TRÁ! – em vez de a ele. Incontinenti ao ataque, a fera deu o passo seguinte em direção a Judiado. No máximo eram, Canindé e Vingança, uma perturbação momentânea para ela. Vingança voava ao seu redor, assediando a besta com seu facão, enquanto Canindé lhe arrodeava os pés com cordas. Isso antes, agora, abandonada a corda mágica, ele já partia para as canelas da criatura com suas facas conquistando efeito semelhante aos avanços que Vingança fazia contra o pescoço.
E nada funciona, pensou João. Havia funcionado antes. Vingança já havia destruído a besta. Canindé já a havia derrubado laçando-lhe os pés. O que mudou? A presença de Mateus?
Não parecia ser. Mateus, escanchado sobre o lombo de Judiado, causara alvoroço na fera, sim, mas isso não justificava o aumento de sua força. Inclusive o próprio Mateus já havia a derrotado em outros momentos. Só nunca nesse ambiente. Teria sido um erro trazer o confronto para o covil da criatura? Com toda certeza foi um erro. Porém, que mais me restava tentar?
— Fale, seu desgraçado! — esbravejou João. Mateus choramingava. Cansado de ouvir a voz dele, João filtrou o som. Concentrou-se no combate.
Seguia-se a agonia. O balé macabro da fera de duas patas contra Vingança e Canindé. Mazé guiava Judiado, carregando Mateus. O jumento deslocava-se na lama como se em água fosse, tentando manter distância segura dos ataques da besta, que corria sem afundar um centímetro, enquanto o próprio João, bem distante da ação, estava afundado até o meio das canelas. Canindé mal beijava o lamaçal com suas sandálias, os solados estalando em seus calcanhares a cada salto para perto ou longe das pernas compridas da fera. E Vingança bailava ao redor do longo pescoço da criatura, aproveitando quando ela mergulhava a cabeça em busca de atacar Canindé. E a cada novo assalto, Vingança se aproximava mais. E a cada novo contra ataque, ele se demorava em recuar.
—Se afastem! — gritou João.
TRÁ! ribombou a mordida. Oras o estrondo chegava antes pelo ar, oras ressoava primeiro sob a lama, conforme a mordida fosse direcionada no alto, contra Vingança, ou embaixo, contra Canindé. João calculou a viagem da onda sonora dos dentes da fera até o corpo de Vingança, cada vez menor a distância. Outra vez ordenou uma recuada. Gritou e Vingança seguia mouco.
— Como pode, cego? Antes tava funcionando!
— Mas agora não está mais, Canindé. — E depois para Vingança: — Se você não se afastar desse bicho, Vingança, eu vou até aí e te arranco pelos cabelos!
Impossível. Vingança era careca e João não conseguiria se aproximar, de qualquer forma. Eles estavam em desvantagem de terreno, um brejo na beira de uma lagoa. A terra molhada se acumulava na sola de suas sandálias pesando mais cada passo. Ficar parado era o mesmo que afundar.
Vingança estava imune à lama. João assistia o cangaceiro flutuar a poucos centímetros do chão enquanto peitava a criatura ou voar a metros de altura antes de descer-lhe a lâmina em rasante. Já o monstro parecia não se incomodar com o terreno. A fera equilibrava-se em duas patas e seus pés possuíam qualquer adaptação suficiente para caminhar na lama. Canindé não voava, tampouco precisava ficar sacudindo as alparcatas para se livrar do barro nos solados, como João. Graças a seus conhecimentos de sortilégios e encantarias, Canindé movia-se com agilidade fora-das-leis. Por vezes, durante o combate, entre os TRÁS! da criatura, João ouvira as sandálias de Canindé pousarem sobre pedras ou galhos, mantendo-se livre da arapuca da lama e dos dentes da besta.