Eu nunca desejei tanto que meu pai ainda estivesse vivo, mesmo ele sendo um homem bastante severo, pelo menos seria ele que estaria aqui agora, no meu lugar negociando o dote de Iaskara. Eu ficaria satisfeito em ser apenas um espectador, não um dos protagonistas. Nas etnias Calons brasileiras não é comum existir dote, mas na minha comunidade em específico sim, porque acreditamos que mesmo que a moça não tenha necessariamente um valor, literalmente falando, cremos que ela possui um valor sentimental imensurável e o dote é uma forma de expressarmos esse sentimento imaterial, pois iremos "perder" essa preciosidade para um novo seio familiar.
Daqui a alguns dias serei eu o noivo que estará negociando o dote com a família de Dalila. Depois de tudo acertado, seguiremos para o ritual de união, e em seguida as festanças com muita comida, música e bebida, rolarão por dois dias ininterruptos com toda a comunidade reunida e os convidados; clãs familiares de outras regiões e gadjés simpatizantes da nossa cultura ( não somos tão fechados para os não-ciganos como a maioria deles pensam, pra falar a verdade, somos receptivos em muitos aspectos, principalmente no quesito em compartilhar nossa alegria com todos os seres independente de etnia). No terceiro dia o pai de Dalila irá fazer a "entrega" dela, assim como farei a de Iaskara, essa reunião é restrita apenas aos membros da família, onde os mais velhos irão aconselhar o casal recém-formado na arte da vida de casados exatamente no local onde eles vão morar, no nosso caso é sempre em tendas muito bem organizadas e confortáveis, e depois da noite de núpcias, na manhã seguinte, elas terão que mostrar a prova da virgindade perdida, mas não é necessariamente o sangue do hímen rompido como os não-ciganos acreditam, e sim um líquido amarelado, meio cinza e marrom, que representa a pureza perdida da mulher, o sangue ao contrário é impuro, é a entrada oficial na execução da vergonha. Caso as moças não sejam puras e virgens, o noivo e a família dele podem exigir uma indenização a família da noiva, e ela carregará uma vergonha irreparável, podendo até mesmo ser banida da comunidade. É, a virgindade é muito importante para meu povo e o nosso maior temor é o banimento, onde seremos lançados a sorte no mundo dos gadjés e podemos até sermos perseguidos e mortos dependendo do motivo do banimento. A pureza costuma ser provada por uma anciã, e testemunhada pelo grupo de mulheres mais velhas da comunidade e as da família da noiva. A anciã introduz um pano branco de algodão na vagina da moça e comprovando sua pureza através do líquido que fica contido ali, elas festejam. A anciã dá um nó no tecido e depois de seco ela o solta, ganhando a forma de uma flor que deve ser guardado pela Calin (como chamamos a mulher cigana da etnia Calon) e só então ela estará oficialmente liberada para ficar pela primeira vez sozinha com o marido para concretizar os desejos sexuais. A partir daí a Calin só poderá sair com a permissão do marido e na companhia dele para a maioria dos lugares, jamais deve trabalhar fora, é dever do homem trazer o sustento para o lar e ela só pode conversar com outros homens na presença de seu marido e sempre andar acompanhada por ele ou pelas outras mulheres da comunidade. Caso haja traição ou qualquer descumprimento das regras, ambos poderão ser punidos.
Faltam poucas horas para Iaskara dormir e acordar todos os dias ao lado de Vladimir e eu serei apenas o estepe, a segunda opção disponível, e caso formos descobertos, correremos o risco de sermos executados pela ferrenha lei cigana. Não sei se é esse o destino que eu quero pra mim...
— Ramon? — minha mãe me cutuca. Devo ter me distraído mais do que deveria em minhas reflexões internas.
— NÃO está de acordo com o valor do dote? — o pai de Vladimir, o senhor Caetano pergunta perceptivelmente apreensivo.
Olho para minha irmã e para Vladimir e ambos estão com os olhos arregalados, temerosos. Iaskara deve estar com medo de eu recusar o negócio, ela parece mesmo interessada em se casar com Vladimir, também não é para menos, ele é um dos partidos mais cobiçados pelas moças, além de bonito, honesto e trabalhador tem muitas posses. E, Vladimir, bom... com certeza ele deve estar achando que eu vou dizer a verdade sobre nós ou desfazer o compromisso, e só nós dois saberíamos que seria por puro despeito. Admito que cogitei nessa hipótese, mas ele não demoraria a achar outra pretendente e não faria diferença nenhuma para mim. A parte boa dele casar com minha irmã é que ele passará a fazer parte da nossa rede familiar e ela da dele e nós teremos mais tempo juntos. Por outro lado, eu não sou do tipo que fica satisfeito com migalhas e não quero que minha irmã sofra. Ela ama mesmo Vladimir! Está visível em seus olhos!
— NÃO, — limpo a garganta — quero dizer, claro que sim, está ótimo — e realmente está bom mesmo. Quanto mais condições financeiras a família tem, mais o dote vale, e mais luxuosos são os casamentos. Quem não tem condições, os padrinhos podem arcar com essas despesas ou simplesmente tudo acontece com mais simplicidade. O importante é se casar e que a moça seja virgem, pois a mulher carrega a vergonha e a função do homem é zelar para que essa vergonha fique segura, caso contrário, ele pode ser motivo de vergonha e perderá o respeito na comunidade. A família também costuma receber um valor simbólico dos integrantes da comunidade que se reúnem e fazem uma espécie de vaquinha para presentear o casal no intuito de ajudá-los no início da vida de casados.
Caetano se levanta e vem me cumprimentar. Vladimir que segura a caixa de madeira com o valor em joias também faz o mesmo e me dá a mesma como símbolo da moça virtuosa que iremos lhe conceder para ser sua esposa e mãe de seus filhos.
Espero por algum sinal da parte dele, mas seu olhar se desvia do meu rapidamente. Ele está mesmo me evitando. Isso me magoa mas sei disfarçar desde que eu me entendo por gente.
Daqui seguimos para nos aprontar para o grande momento.
Assim que ficamos todos prontos, vestidos elegantemente, se dá início a festa.
Apesar de muitos ciganos estarem aderindo ao modo ocidental de se vestirem no momento do casamento, como o vestido branco para a noiva, o mais comum é que ele seja muito colorido, cheio de vida e moldado a personalidade da cigana. Nesse caso, o vestido de Iaskara é um rosa claro com muitos enfeites. Vladimir está vestido com uma camisa colorida, usa jeans claros, botas, chapéu e várias joias douradas estão distribuídas entre seu pescoço e pulso. Como não seguimos nenhuma religião e não há casamento na igreja, realizamos vários rituais, dentre eles o da coroa. A coroa de Iaskara é posta em equilíbrio, caso ela caia, significa que ela não é mais pura nem digna de se casar. Outra cigana que já é casada e obviamente não é mais virgem também é colocada a prova e eu não sei que tipo de energia está envolvida nisso porque a coroa dela cai e a da minha irmã não, confirmando as teorias.
Viro a garrafa de bebida na boca. O momento de eu levar Iaskara até os braços de Vladimir para o chefe Leon lhes dar as bênçãos e realizar o ritual de união que consiste em amarrar os punhos com um lenço colorido e usar um punhal para simbolizar o corte do fim de um ciclo e o começo de outro, juntando o casal nessa nova fase. Sinto vontade de sair correndo ou gritar para todos que eu amo o Vladimir e desejo ficar junto com ele, mas me contenho. Não posso fazer isso. Isso não diz respeito só à mim e eu não quero causar uma tragédia.
Me mantenho mentalmente distante torcendo para que isso acabe logo e eu finalmente possa ficar sozinho com o Vladimir, mas parece que estou vivendo uma eternidade em um suplício.
A madrugada chega e todos ainda estão festejando, dançando, cantando, bebendo, sorrindo ao ritmo de sons típicos e eu estou tão bêbado que mal consigo me sustentar nas minhas próprias pernas, seguindo Vladimir com os olhos sem perdê-lo nem por um instante, e assim que ele enfim fica sozinho na mesa farta de comidas enquanto a carne assa sem parar, me aproximo dele, pegando forte em seu ombro, exigindo ao pé de seu ouvido:
— Quero falar com você.
Ele arregala os olhos assustado e olha para os lados com medo de alguém estar nos vendo.
— Ficou maluco, Ramon? Agora não. Quer que alguém desconfie?
— Agora sim! Te espero lá perto do rio.
— Você exagerou na bebida de novo.
— Eu não vou falar de novo. Ou você arruma um tempo pra me encontrar lá no rio ou eu vou fazer um escândalo, entendeu?
— Está bem, está bem, calma, calma, vai primeiro, vou inventar que preciso ir no banheiro e já vou...
— É bom aparecer mesmo — aviso ameaçador e dou as costas.
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Beba deste cálice (CIGANO/GAY)
RomanceRamon é cigano, pertence a etnia Calon e cresceu levando uma vida peregrina pelo Brasil até sua comunidade finalmente conseguir se instalar em terras mineiras. Ele se entende gay e terá que enfrentar a própria cultura para ser quem realmente é.